Jovem negro chicoteado não é caso isolado, é retrato da história

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Foto: reprodução

Um jovem esquizofrênico foi chicoteado no Complexo do Chapadão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Policiais militares atingiram várias vezes suas costas com um fio, deixando-as marcadas. Queriam que desse informações sobre outros homens, mas ele, por causa de suas limitações, não conseguiu responder. Por isso, apanhou. O irmão fez a denúncia à 31ª Delegacia de Polícia (Ricardo de Albuquerque). O fato teria ocorrido em 26 de julho e foi noticiado pela imprensa nesta sexta-feira 2.

É difícil não se indignar diante de tamanha covardia. Mas se o rapaz não tivesse um transtorno psiquiátrico, a covardia seria menor? Se fosse alguém ligado ao comércio de drogas, a violência seria aceitável?

São perguntas para estimular reflexões — sobretudo hoje, quando o presidente do país tem como ídolo maior um torturador. Quando se considera que há pessoas torturáveis e outras não, já se apagou a linha que separa civilização de barbárie.

Não é difícil pôr na conta da má índole casos como o do Chapadão. Ou seja, são homens maus os que fizeram isso. Ao responsabilizarmos indivíduos, ficamos poupados de avaliar qual é a nossa (“sociedade”) responsabilidade.

A imagem das costas feridas remete aos negros escravizados que eram punidos dessa forma. Pela foto que apareceu na TV, o rapaz parece pardo (na classificação do IBGE). Mesmo que seja branco, ele tem um marcador que o torna vulnerável a violências do tipo: é morador de favela. No apartamento de uma família de classe média, a polícia entraria sem mandado, quebraria objetos e chicotearia alguém?

Alega-se sempre que são regiões muito violentas e onde não é viável obedecer a exigências legais como mandados. Porém, é dizendo agir em nome da lei, do combate ao crime, que a polícia invade casas nas favelas, agride moradores e dispara rajadas de tiros em territórios superpopulosos, banalizando as “balas perdidas”.

O Complexo do Chapadão está na área do 41º Batalhão de Polícia Militar. É conhecido como o “batalhão da morte”. Costuma liderar o ranking estadual de autos de resistência — quando a polícia mata em supostos confrontos. Uma reportagem publicada por ÉPOCA em abril de 2018 apontou que, no ano anterior, 112 pessoas tinham sido eliminadas pelos homens do 41º. O número de vítimas superou os das polícias militares de 16 estados.

Foi contra esse batalhão que Marielle Franco digitou um tuíte em 10 de março do ano passado, quatro dias antes de ser assassinada.

Mais uma vez, ressaltarão que é uma região muito perigosa e que os conflitos são inevitáveis. Mas há casos que certamente poderiam ser evitados, para ficarmos só nos mais conhecidos. Em 28 de novembro de 2015, no bairro de Costa Barros, quatro policiais dispararam 111 tiros contra um carro no qual cinco jovens (entre 16 e 25 anos) voltavam de um passeio comemorativo do primeiro salário de um deles, auxiliar de supermercado. Morreram todos, todos negros. Nenhum tinha envolvimento com o comércio de drogas.

Em 30 de março de 2017, no bairro de Acari, Maria Eduarda Alves, de 13 anos, estava na escola, uniformizada, e foi atingida por tiros de fuzil disparados por um policial. Ele queria acertar “bandidos”, mas sabia que a escola estava no caminho, e mesmo assim atirou várias vezes.

Essas informações servem para indicar que não é casual o que aconteceu ao jovem com transtorno psiquiátrico. Não é fruto de má índole dos agressores — ou não só. Faz parte de um trabalho sistemático de um batalhão da Polícia Militar. E quem sustenta esse trabalho? Nós, os contribuintes; nós, os coniventes.

A foto das costas marcadas pelas chicotadas faz lembrar, pelo menos, outras duas imagens marcantes. A primeira, grande momento do fotojornalismo, foi feita por Luiz Morier em 1983: um policial militar mantém homens negros presos com cordas no pescoço.

A outra é de 3 de fevereiro de 2014, registrada em celular pela artista plástica Yvonne Bezerra de Mello: um adolescente que cometia assaltos no bairro do Flamengo (Zona Sul do Rio) está preso pelo pescoço num poste, nu. Foi deixado assim por três homens mascarados — o que remete à Ku Klux Klan.

Achar que essas imagens não têm qualquer relação com nossa história escravocrata é, mais uma vez, fingir que são casos isolados, de gente que cometeu erros e, por isso, foi punida. Assim, fica mais fácil encher o peito e soltar a clássica sentença: “Eu não sou racista”.

Uma estratégia para tornar a frase verossímil para si mesmo é inverter o sinal do racismo e apontar o dedo para os negros “maus”. Ou seja, “eu não sou racista, mas também há negros que…”. É a velha tese, falsamente igualitária, dos dois lados, tão usada pelos defensores da ditadura militar. Neste sábado 3, a Delegacia de Homicídios da Capital prendeu o barbeiro Rodrigo de Jesus, negro, de 25 anos. Ele torturava rotineiramente a filha, Mel Rhayane, que morreu aos 6 anos após ser amarrada, chicoteada e espancada.

Rodrigo não fez isso por ser negro, obviamente, mas por ser sádico, pervertido, bárbaro. Assim também eram os torturadores brancos que agiam na ditadura. Estes são tolerados e mesmo admirados por parte da população brasileira, a começar pelo presidente da República. É difícil imaginar um deles amarrado num poste, embora fizessem coisas muito piores com suas vítimas.

Na última operação contra as milícias no Rio, saiu nos jornais que tantas “pessoas” foram presas. As fotos mostravam homens brancos, com camisas, calças e sapatos. Pareciam pessoas afáveis, embora integrem uma rede de grupos de extermínio.

Quando a operação é em favelas, noticia-se que tantos “suspeitos” (de quê?) foram mortos — não costumam ser presos, pois, como explicita o governador Wilson Witzel, a ordem é “tiro na cabecinha”. Quando surge alguma imagem, são de corpos maltrapilhos, com chinelos ou nem isso. Vários deles são cruéis, capazes de trucidar desafetos ou quem apenas cruzou por engano seu caminho. E têm a cor da pele e o CEP errados. Os milicianos fazem as mesmas coisas, com os mesmos fuzis, mas têm aparências e endereços mais respeitados. Melhor, têm amigos de peso. Conseguem até cargos em gabinetes de políticos muito poderosos.

Da Época