CLAUDIO FACHEL/PALÁCIO PIRATINI

MPF se manifesta contra desmonte do Conselho da Criança

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CLAUDIO FACHEL/PALÁCIO PIRATINI
CLAUDIO FACHEL/PALÁCIO PIRATINI

O Ministério Público Federal se manifestou nesta terça-feira (10) contra desmonte do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

O decreto 10.003/2019, publicado na quinta-feira (5) passada, no Diário Oficial da União (DOU), cassou o mandato de todos os conselheiros eleitos e empossados em março deste ano e mudou o funcionamento do órgão, impossibilitando sua plena atuação.

Leia manifestação de procuradores e entidades de direitos humanos.

NOTA PÚBLICA CONJUNTA PFDC E CNPG/GNDH/COPEIJ

Nota pública em defesa da manutenção do processo democrático quanto à composição e funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda): ilegalidades e inconstitucionalidades do Decreto Federal nº 10.003, de 4 de setembro de 2019

A Constituição da República de 1988, em seu art. 227, estabeleceu, nesta ordem, ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, e, para dar efetividade ao exercício deste dever compartilhado, no 8 7º desse mesmo artigo, combinado com o inciso Il do art. 204, impôs como diretriz das ações governamentais na política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

Desta forma, atendendo aos anseios da sociedade brasileira, que reivindicava mecanismos de descentralização de poder, inaugurou-se no Brasil um modelo de democracia participativa —- e não meramente representativa — em que o exercício da cidadania, além dos direitos políticos de votar e ser votado, passou a abranger também o poder de influenciar e controlar as decisões governamentais.

Após promulgada a Constituição e sob a bandeira da prioridade absoluta (art. 227), a sociedade civil manteve seus esforços junto ao Congresso Nacional, visando obter uma rápida regulamentação dos direitos fundamentais da infância e da juventude. Tais esforços foram recompensados com a promulgação da Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990 — Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) —, que, em seu art. 18, já anuncia: “esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.

Para dar concretude ao modelo de democracia participativa instituído pelo art. 204, II, c/c o art. 227, 8 72, da nossa Carta Política, o ECA estabeleceu como diretrizes da política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, como órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas da sociedade, segundo leis federal, estaduais e municipais, bem como a manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente (art. 88, incisos Il e IV).

Aos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, como órgãos de natureza deliberativa e fiscalizadora, compete diagnosticar e debater os problemas que afetam a infância e a juventude em cada esfera federativa, propondo soluções para a formulação da política de atendimento e fiscalizando a sua execução, sendo responsável, ainda, pela gestão do respectivo fundo.

Naturalmente, a gestão dessa política nacional de atendimento está submetida ao princípio constitucional da prioridade absoluta e é certo que a garantia de prioridade compreende a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com proteção à infância e juventude (ECA, art. 4º, parágrafo único, alíneas ‘b”, ‘c’e ‘d”.

Tudo isso para deixar claro que:

  1. a) os conselhos de políticas sociais públicas são instituições democráticas, previstas na Constituição para viabilizar a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis;
  2. b) incorre em inconstitucionalidade, por ofensa ao direito da população ao exercício da democracia participativa, o ente federado que deixa de manter ou não mantém de forma eficiente os conselhos de políticas sociais públicas.

Por força das determinações constitucionais e legais, o Conanda foi criado pela Lei Federal nº 8.242, de 12 de outubro de 1991, com as seguintes atribuições (art. 2º):

!- elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);

Il – zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente;

HH! – dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais, e entidades não-governamentais para tornar efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos na Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990;

IV – avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente;

V- (Vetado) VI – (Vetado)

Vil – acompanhar o reordenamento institucional propondo, sempre que necessário, modificações nas estruturas públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente;

VII! – apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou violação dos mesmos;

IX – acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente;

X – gerir o fundo de que trata o art. 6º da lei e fixar os critérios para sua utilização, nos termos do art. 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;

XI – elaborar o seu regimento interno, aprovando-o pelo voto de, no mínimo, dois terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente. (grifo nosso)

O art. 3º da mesma Lei, que se encontra em pleno vigor, estabelece que o Conanda deve ser integrado por representantes do Poder Executivo, assegurada a participação dos órgãos executores das políticas sociais básicas na área de ação social, justiça, educação, saúde, economia, trabalho e previdência social e, em igual número — princípio da paridade —, por representantes de entidades não governamentais de âmbito nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente.

Essa breve contextualização tem como propósito apresentar os fundamentos, a importância e a razão de existir dos conselhos, para em seguida analisar as repercussões do Decreto nº 10.003, de 4 de setembro de 2019, por meio do qual o Excelentíssimo Senhor Presidente da República alterou o Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018, para promover graves alterações na composição, estrutura e forma de funcionamento do Conanda.

O novo decreto, pelo que se percebe das suas disposições, não teve o propósito de aprimorar e fortalecer o órgão por meio do qual a sociedade exerce o direito de participar da formulação e controle da política nacional — e absolutamente prioritária — de atendimento aos direitos da criança e do adolescente.

Muito pelo contrário. O que esse ato presidencial impõe é a desconstrução do próprio Conanda — vale dizer: contra a sociedade e contra a prioritária obrigação de todos de proteger a infância e a juventude do Brasil —, uma vez que:

| – desconsiderando eleições legítimas, determina a dispensa de todos os membros do Conanda a partir da entrada em vigor do novo decreto, significando na prática a DISSOLUÇÃO DO CONANDA, por ato unilateral do Chefe do Poder Executivo Federal, em franco desrespeito aos direitos das organizações da sociedade civil de exercerem até o final os seus atuais mandatos, adquiridos na forma do Regimento do Conanda, do art. 88, inciso Il, do ECA, da Lei Federal nº 8.242/91 e do art. 204, inciso Il, da Constituição Federal (Decreto nº 10.003/2019, art. 2º);

Il – retira do conceito do órgão a função de órgão controlador da política, violando disposição expressa de lei federal (ECA, art. 88, inciso Il);

I – subtrai do Conanda — e, consequentemente, dos representantes da sociedade civil — a prerrogativa de regulamentar e presidir os processos de escolha das organizações da sociedade civil, afrontando, assim, o dever de corresponsabilidade e a diretriz de participação social estabelecidos na Constituição Federal, concentrando estas funções ao próprio Governo federal, por meio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), o que na prática significa o completo alijamento da sociedade civil do processo de escolha de sua própria representação, o que também viola o princípio da paridade e da democracia participativa;

IV – revoga a previsão de acompanhamento do processo de escolha dos representantes das organizações da sociedade civil pelo Ministério Público Federal, menosprezando a atribuição constitucional do MP de zelar pelo regime democrático e pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição (arts. 127 e 129, II);

V – interfere na faculdade de auto-organização, autogestão e funcionamento do Conanda — consequentemente, quebrando a paridade também neste aspecto quanto à atuação dos representantes da sociedade civil — ao retirar do órgão a prerrogativa de dispor em regimento interno sobre a periodicidade de suas próprias reuniões ordinárias e extraordinárias, já que determina a periodicidade trimestral para as reuniões ordinárias e estabelece como prerrogativa exclusiva do MMFDH a convocação de reuniões extraordinárias, em manifesto prejuízo ao cumprimento das atribuições legais do Conselho, bem como desprestigiando a sociedade como um todo;

VI – restringe a participação dos representantes da sociedade civil não residentes no Distrito Federal ao estabelecer que os membros que se encontrem em outros entes federativos participarão das reuniões por meio de videoconferência — tal medida representa manifesto desequilíbrio entre os representantes da sociedade civil e os do Poder Público, na medida em que estes podem ser escolhidos apenas entre residentes no Distrito Federal e terão à sua disposição local e equipamentos estabelecidos por faculdade exclusiva do governo, gozarão de maiores facilidades de conversa e articulação entre si, enquanto que os representantes da sociedade civil — é imprescindível lembrar, que exercem funções não remuneradas e considerada legalmente serviço público relevante — não só terão o ônus de providenciar equipamentos compatíveis com os porventura escolhidos pelo Governo Federal, mas, sobretudo, ferindo mais uma vez o princípio legal da paridade, estarão sujeitos aos problemas técnicos e instabilidades que o uso de tais equipamentos ensejam, mormente quando utilizados para reuniões de participantes que podem estar situados em diversas partes do país, contribuindo para a redução do poder de fala, observação, contraposição e representação efetiva;

VII – retira da regulamentação — art. 83 do Decreto nº 9.579/2018 — a indicação do órgão executivo encarregado do suporte técnico-administrativo-financeiro necessário ao funcionamento do Conanda, até então atribuída ao Ministério dos Direitos Humanos — atual MMFDH -, ao qual caberia prestar o apoio técnico e administrativo e prover os meios necessários à execução das atividades do Conanda, das comissões permanentes e dos grupos temáticos, enfraquecendo, mais uma vez, a capacidade de trabalho do órgão;

VIII – revoga a possibilidade de comissões permanentes e limita a apenas três a possibilidade de grupos temáticos operando simultaneamente, além de limitar a duração destes a um ano — art. 84 do Decreto nº 9.579/2018 —-, enfraquecendo de forma óbvia e excessiva a capacidade de trabalho e a eficiência do Conanda;

IX – revoga a autorização para despesas com deslocamentos dos membros do Conanda, das comissões permanentes e dos grupos temáticos, antes atribuídas à conta das dotações orçamentárias consignadas anualmente ao Ministério dos Direitos Humanos, atual MMFDH, ferindo de morte, mais uma vez, a capacidade de funcionamento e eficácia do órgão;

X – retira do Presidente do Conanda, ad referendum do Plenário, a solução dos casos omissos, remetendo esta prerrogativa ao regimento interno, como se o regimento pudesse dispor sobre todas as hipóteses possíveis e imagináveis.

Vê-se, pois, que o decreto governamental recém-editado traz em seu corpo a evidente intenção de reduzir o caráter democrático do Conanda, fragiliza a sua capacidade de cumprir as complexas funções a ele atribuídas, culminando em ofensa ao disposto no art. 227 e seu 8 78, combinado com o art. 204, Il, ambos da Constituição Federal, em prejuízo do regime democrático e do país como um todo, visto tratar-se de uma política prioritária.

As questões e políticas que envolvem a criança e o adolescente, além de prioritárias, segundo a Constituição Federal, são extremamente complexas e desafiadoras, sendo o Conanda o formulador da política nacional, seu fiscalizador, além de lhe competir avaliar a política estadual, municipal, a atuação dos respectivos conselhos, entre outras funções, e, portanto, como fazê-lo em apenas 4 reuniões anuais e ainda subtraindo dos representantes da sociedade civil – e apenas deles — a possibilidade de participarem pessoalmente?

Cabe ainda ao Conanda a gestão do Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA), inclusive, fatalmente ficará prejudicada, em prejuízo do financiamento de inúmeros projetos destinados à promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

Somando-se a isso a quebra afrontosa do princípio da paridade, a subtração total do suporte financeiro e a sonegação à sociedade civil de conduzir o processo de escolha de seus representantes, tem-se um conjunto de violações que ferem não apenas os dispositivos legais acima mencionados, mas também a garantia de prioridade tal como prevista no art. 4º do ECA e, mais uma vez, o art. 227 da Constituição.

Pois, por força dessa garantia, a retirada de recursos financeiros do Conanda somente se justificaria, em tese, se o Governo Federal comprovasse antes ter feito o mesmo com todos os demais órgãos colegiados existentes na esfera federal, de qualquer natureza.

Não menos importante é a inevitabilidade de se reconhecer que esse ato do Chefe do Poder Executivo Federal também ofende o princípio da proibição do retrocesso nas políticas sociais públicas, assim compreendido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo Regimental nº 639.337:

  • O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive.
  • À cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. […]
  • Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. (removidos os grifos do original)

Nesse diapasão, o ato governamental em tela, ora público e consumado, atenta contra os princípios da administração pública, já que, como acima exposto, viola os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições.

Diante de tal quadro, o Ministério Público, em seu lugar de instituição encarregada da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, espera e exige o devido respeito ao princípio constitucional da prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente, bem como aos dispositivos legais, constitucionais e normas internacionais que consagram a política de atendimento socioeducativo como uma política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.

E, reafirmando sua oposição a toda e qualquer proposta que preconize o enfraquecimento do Conanda, espera que o Governo Federal possa rever imediatamente o Decreto Federal nº 10.003/2019 e devolver ao Conanda as suas prerrogativas e os recursos necessários ao seu bom funcionamento.

Brasília/DF, 10 de setembro de 2019.

Paulo Cézar dos Passos, procurador-Geral de Justiça do MPMS

Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, subprocuradora-Geral da República

Ediene Santos Lousado, Procuradora-Geral de Justiça do MPBA