Para criminalista, prometer indulto dá licença para matar

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Foto: Rogério Albuquerque – 3.out.1992/Folhapress

Autor de mais de 20 obras na área do direito penal, o advogado Cezar Roberto Bitencourt, 69, afirma que a promessa do presidente Jair Bolsonaro de indultar policiais “ultrapassa os limites constitucionais permitidos”.

“Prometer antecipadamente indultar determinada categoria, policiais, pelo simples fato de integrarem as forças de segurança caracterizará, inegavelmente, licença para matar”, diz Bitencourt, doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha, Espanha.

Segundo ele, o indulto garantirá a impunidade não apenas desses policiais, “mas de todos os demais que vierem a matar no futuro”.

O presidente tem poder incondicional para indultar policiais? O presidente tem, em tese, poder para indultar qualquer condenado, ressalvada a restrição constitucional. Não se trata de um poder presidencial ilimitado, posto que não existe poder absoluto em nosso texto constitucional, que adota um sistema de freios e contrapesos, equilibrando a independência e harmonia dos três Poderes.

O indulto é ato discricionário e privativo do presidente da República, que pode concedê-lo segundo critérios de conveniência e de oportunidade, observada a limitação constitucional [inc. XLIII do artigo 5º]. O poder de indultar um condenado constitui liberalidade do Estado conferido ao seu mandatário máximo. Trata-se de “benefício” concedido, em caráter absolutamente excepcional, aos autores de práticas delituosas. O presidente, ao exercer essa competência constitucional, pratica um ato discricionário, que deve, em tese, ser respeitado pelos demais Poderes.

Quais são os limites para uma medida como essa? Os limites são os previstos na própria Constituição, ou seja, somente poderá ser examinada pelo Poder Judiciário a sua constitucionalidade, e não o mérito do indulto. Pela Constituição, como limite, estão excluídos dessa clemência soberana “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”.

Bolsonaro citou como beneficiários os policiais que participaram do massacre de Eldorado de Carajás e do massacre do Carandiru, bem como os envolvidos no episódio do ônibus 174, no Rio. Qual a opinião do senhor a respeito? Não lembro, nos últimos tempos, de alguma concessão de indulto que tenha sido inconstitucional, nem mesmo aquele concedido por Temer, segundo o STF. No entanto, prometer antecipadamente indultar determinada categoria, in casu, de policiais, pelo simples fato de integrarem as forças de segurança, parece-nos que, nessa hipótese, ultrapassa os limites constitucionais permitidos, afrontando o próprio Poder Judiciário, pois caracterizará, inegavelmente, “licença para matar”, garantindo a impunidade não apenas desses policiais mas de todos os demais que vierem a matar no futuro. Será uma espécie sui generis de um “salvo conduto” prévio.

Na campanha eleitoral, Bolsonaro atacou o indulto afirmando que era uma medida que colocava bandidos na rua. Qual a mensagem que ele passa ao prometer indultar policiais condenados? Essa questão deixa muito claras as incoerências no cotidiano do presidente: um dia diz uma coisa, no outro diz outra, e assim sucessivamente, não havendo qualquer segurança sobre o que pensa o senhor presidente, no suceder dos seus dias de governo. Comportamento como esse gera uma grave sensação de insegurança e de incerteza no futuro desse governo. Aliás, parece estar seguindo a linha arbitrária do seu ministro da Justiça [Sérgio Moro], que já tentou criar essa “licença para matar”, ao tentar alterar os artigos 23 e 25 do Código Penal [que tratam da legítima defesa e da atuação de policiais em confronto armado].

Nesses oito meses de governo, a polícia já assassinou muitas dezenas de pessoas nas grandes capitais, principalmente, nas favelas brasileiras, sem sequer responder processo.

O indulto surgiu no direito em que momento e por qual razão? Quando foi introduzido no direito brasileiro? O indulto veio do período monárquico e instalou-se em todos os regimes republicanos ocidentais, a começar pelos Estados Unidos da América, na sua Constituição de 1787. Foi introduzido no Brasil com nossa Constituição Republicana de 1891. Ao contrário do modelo norte-americano que aplica a clemência penal somente na espécie individual (perdão presidencial), no Brasil consolidou-se a incidência do indulto tanto individual (graça ou perdão presidencial), quanto coletivo (decretos genéricos de indultos), como sempre ocorre no período natalino. Desde então foi mantido em todas as nossas Cartas Constitucionais. A atual consagra no inciso II do artigo 84, como prerrogativa exclusiva do presidente da República, limitado pelo disposto no inciso XLIII do artigo 5º.

Não é um instrumento com certo traço absolutista, considerando que resulta em decisão unilateral e sem controle direto dos demais Poderes? Na realidade, a Constituição adotou um sistema de freios e contrapesos entre os três Poderes, o qual tem funcionado bem ao longo da nossa história. Logicamente, imaginou o legislador que o primeiro mandatário de uma nação seja uma pessoa coerente e ponderada, deixando como limite a previsão constitucional. Por isso, parece-nos equivocado falar-se em “decisão unilateral”, na medida em que no constitucionalismo moderno não temos o Poder Executivo representado por um órgão coletivo. Por isso, devemos ter presente que se trata do Poder Executivo, que é exercido pelo presidente. E mais que isso: a referida decisão está sujeita ao controle de constitucionalidade, como ocorreu recentemente com o decreto emitido pelo ex-presidente Michel Temer.

É correto dizer que, por conta da superlotação das cadeias, o indulto se transformou no Brasil em um mecanismo de política penitenciária com o objetivo primordial de disponibilizar novas vagas? O indulto não é, nunca foi e nunca será, isoladamente, um instituto a ser utilizado como política criminal de abertura de vagas nas prisões obsoletas, superlotadas e desumanas brasileiras! Afirmação dessa natureza não passa de odiável demagogia barata, mal intencionada e imoral. No entanto, a sua adoção na forma pretendida pelo presidente beira as raias da inconstitucionalidade por sua finalidade anulatória das decisões do Poder Judiciário, além da gravidade de representar, declaradamente, uma “licença para matar”!

Aliás, o atual governo não tem nenhuma preocupação com a superlotação dos presídios, tanto que, em oito meses de governo, o seu ministro da Justiça não adotou nenhuma medida para conter a violência nas prisões e muito menos para diminuir a lotação dos presídios. Pelo contrario, houve várias rebeliões internas com a morte de mais de uma centena de presidiários e nenhuma política criminal ou administrativa foi adotada até agora pelo atual ministro.

Deve-se destacar, ademais, que a responsabilidade pelo sistema penitenciário e pela segurança dos internos é do Ministério da Justiça. Aliás, as mortes de presidiários, repetidas em alguns episódios no Norte e Nordeste, devem ser creditadas ao atual ministro da Justiça, que pode ser responsabilizado administrativa e criminalmente por sua omissão. Com efeito, o deslocamento de grande quantidade de presos perigosos e líderes de facções criminosas para penitenciárias inadequadas, sem a estrutura interna e divisões suficientes para dar segurança a esses grupos perigosos, ocorreram por determinação do Ministério da Justiça, que é diretamente o responsável por essas chacinas.

CEZAR ROBERTO BITENCOURT, 69

Formação: Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha, Espanha

Cargos: Professor universitário, procurador de justiça aposentado e advogado criminalista. Autor de mais de 20 obras na área do Direito Penal, algumas traduzidas no exterior

Da FSP