Quais foram as mensagens dos antecessores de Bolsonaro na ONU?

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Montagem: G1

Os discursos de presidentes na Assembleia Geral das Nações Unidas são uma grande oportunidade para um país vender ao mundo suas prioridades internas e externas, as credenciais para assumir posições de protagonismo internacional e se defender de ataques, se estiver no centro de alguma polêmica.

Da participação de Fernando Collor a Michel Temer na ONU, passando por Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, é possível avaliar como evoluiu a posição do Brasil no xadrez internacional.

Nesta terça (24), Bolsonaro fez a sua estreia no organismo internacional sob grande pressão devido ao aumento do desmatamento na Amazônia e o número de incêndios na floresta neste ano.

Ele defendeu a soberania do Brasil sobre a questão e citou dados para afirmar que o país tem agido na proteção ambiental.

O tema do meio ambiente esteve presente nos discursos de todos os presidentes brasileiros democraticamente eleitos que subiram no púlpito do plenário da ONU.

Em comum, está o enfoque em defender que o Brasil está “fazendo a sua parte” na proteção ambiental e a cobrança de compensações dos países ricos.

Mas quais foram as outras mensagens dos antecessores de Bolsonaro? O que esses discursos na Assembleia Geral da ONU dizem sobre as mudanças na política externa brasileira?

Collor: ênfase em direitos humanos

Como primeiro presidente eleito após a redemocratização, Fernando Collor assumiu a missão de passar a imagem de um Brasil comprometido a se adequar às exigências internacionais em direitos humanos e de não-proliferação de armas nucleares, diz a professora Mariana Kalil, que leciona Relações Internacionais na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro.

O discurso dele nas Nações Unidas em 1991 reforça a tentativa de mostrar que o país estava em busca das credenciais necessárias para assumir maior protagonismo em organismos internacionais, como no Conselho de Segurança da ONU.

“Direitos humanos não eram prioridade no regime militar e, no processo de redemocratização, as Forças Armadas tinham visão divergente em relação à desmobilização do programar nuclear brasileiro”, explica Kalil.

“Desde o governo José Sarney, o Brasil tentava demonstrar que estava querendo ficar em dia com as nossas hipotecas nessas duas áreas: direitos humanos e armas nucleares. Collor usou parte do discurso para assegurar esses compromissos.”

O Brasil ainda não havia aderido ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e era alvo de pressão por parte de países desenvolvidos, como os Estados Unidos e nações europeias.

“O Brasil de hoje descarta a ideia de qualquer experiência que implique explosões nucleares, ainda que para fins pacíficos, e espera que outros países considerem a hipótese de tomar o mesmo caminho”, garantiu Collor, no discurso.

Ele também tentou assegurar que o Brasil estava a caminho da abertura comercial e rumo à modernização da sua economia, tópicos do agrado da comunidade internacional pós-guerra fria.

“O mandato que me conferiu o povo é o de promover a rápida modernização e a plena integração do país à economia internacional, para torná-lo mais competitivo e para que sua gente alcance os níveis de bem-estar a que seu talento e operosidade lhe dão direito”, discursou, na ocasião.

FHC: Brasil pronto para o protagonismo internacional

Fernando Henrique discursa na ONU como presidente do Brasil, em 1997 — Foto: UN Photo/Eskinder Debebe

Se durante o governo Collor a participação brasileira na ONU teve o objetivo de reforçar que o Brasil estava em busca de se modernizar para assumir papel de liderança internacional, no governo Fernando Henrique Cardoso o esforço passou a ser o de defender que o país já estava pronto para ser protagonista.

Em 1998, o Brasil assinou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e passou a defender mais ativamente reformas nos organismos internacionais.

“O Brasil tentava mostrar que estava pronto para assumir o papel de protagonismo no cenário internacional que lhe era devido. O objetivo de FHC na ONU era comprovar que pagou sua ‘hipoteca’ de direitos humanos e nuclear”, diz Mariana Kalil.

Fernando Henrique discursou pessoalmente na Assembleia Geral da ONU em 24 de setembro de 2001, duas semanas depois dos atentados do 11 de Setembro nos EUA.

Nos outros anos de sua gestão, os ministros das Relações Exteriores representaram o Brasil no evento.

Na única ocasião em que abriu pessoalmente a Assembleia Geral da ONU, FHC usou o discurso para manifestar solidariedade aos Estados Unidos após os atentados terroristas daquele ano.

O líder brasileiro também cobrou a ampliação do Conselho de Segurança da ONU, criticou o protecionismo comercial dos países ricos e reforçou o papel do Brasil na busca de uma globalização “com justiça”.

“A força da ONU passa por uma Assembleia Geral mais atuante, mais prestigiada, e por um Conselho de Segurança mais representativo, cuja composição não pode continuar a refletir o arranjo entre os vencedores de um conflito ocorrido há mais de 50 anos, e para cuja vitória soldados brasileiros deram seu sangue nas gloriosas campanhas da Itália”, disse o então presidente.

“Como todos aqueles que pregam a democratização das relações internacionais, o Brasil reclama a ampliação do Conselho de Segurança e considera ato de bom senso a inclusão, na categoria de membros permanentes, daqueles países em desenvolvimento com credenciais para exercer as responsabilidades que a eles impõe o mundo de hoje.”

É também no discurso de FHC que o Brasil passa a falar, pela primeira vez, em mudanças climáticas.

“A proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável são desafios inadiáveis de nosso tempo. A marcha das alterações climáticas é um fato cientificamente estabelecido”, discursou, em 2001.

Lula: destaque para avanços sociais

Segundo Mariana Kalil, no governo Lula, o Brasil começa a orquestrar, em termos mais práticos, o pleito por ampliar sua participação em organismos internacionais, como no Conselho de Segurança da ONU e na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Nos seus discursos na Assembleia Geral da ONU, o ex-presidente petista deu grande enfoque em dizer que o Brasil era exemplo de desenvolvimento social, com a adoção de programas de transferência de renda como o Bolsa Família.

“No Brasil, estamos instaurando um novo modelo capaz de conjugar estabilidade econômica e inclusão social. As negociações comerciais não são um fim em si mesmo. Devem servir à promoção do desenvolvimento e à superação da pobreza. O comércio internacional deve ser um instrumento não só de criação, mas de distribuição de riqueza”, defendeu em seu primeiro discurso na ONU, em 2003.

Posteriormente, o governo Lula passou a citar o papel do Brasil na liderança da missão de paz da ONU no Haiti, iniciada em 2004, como uma de suas “credenciais” para assumir uma cadeira permanente no Conselho de Segurança.

“Lula associa todo o processo de criação de programas sociais, como Fome Zero, Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família, às credenciais do Brasil para assumir um assento permanente no Conselho de Segurança e também cita a participação brasileira em missões de paz”, diz Kalil.

“Ou seja, ele vende o Brasil como capaz de exportar tecnologia social, exportar modelos de desenvolvimento e garantir segurança.”

Em seus discursos de 2008 e 2009, em meio à crise financeira internacional, Lula também criticou, em seu discurso na ONU, o modelo americano de interferência mínima na economia. E tentou vender o modelo brasileiro de lidar com turbulências econômicas adotando medidas anticlíclicas e estimulando o consumo.

Segundo o então presidente, a crise internacional demonstrou a “falência” da “doutrina absurda de que os mercados podiam autorregular-se, dispensando qualquer intervenção do Estado.”

“A verdadeira raiz da crise foi o confisco de grande parte da soberania popular e nacional — dos Estados e dos governos democráticos — por circuitos autônomos de riqueza e de poder”, defendeu em 2009.

Sobre meio ambiente, Lula cobrou reiteradamente dos países ricos maior compensação às nações em desenvolvimento pela sua proteção ambiental.

“Preocupa-nos a resistência dos países desenvolvidos em assumir sua parte na resolução das questões referentes à mudança do clima. Eles não podem lançar sobre os ombros dos países pobres em desenvolvimento responsabilidades que lhes são exclusivas”, afirmou em um de seus discursos na ONU.

Dilma: ataque duro à ‘espionagem americana’

Dilma Rouseff discursa como presidente do Brasil, na ONU, em 2016 — Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Mariana Kalil diz que os discursos da presidente Dilma Rousseff na ONU foram de continuidade à política do ex-presidente Lula, mas com menor abrangência e fôlego, já que a petista dedicou pouco tempo à política externa durante os seus quase seis anos de governo.

“Houve uma continuidade por inércia. Uma manutenção da tendência, mas com perda de fôlego, porque, na prática, não foram dados impulsos em nenhum canal de política externa defendido pelo governo”, afirma a professora de Relações Internacionais.

Mas o discurso de 2013 de Dilma na ONU chamou a atenção por uma questão recém-revelada na época. Na ocasião, havia sido divulgada a notícia de que o governo americano espionou correspondências do governo brasileiro.

Ao abrir a Assembleia Geral, a então presidente disse que as ações de espionagem dos Estados Unidos no Brasil “ferem” o direito internacional e “afrontam” os princípios que regem a relação entre os países.

Documentos classificados como ultrassecretos da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, divulgados pela TV Globo, mostraram que Dilma e seus principais assessores foram alvo direto de espionagem da NSA.

Em resposta, a presidente cancelou uma visita de Estado que faria a Washington para se reunir com o então presidente Barack Obama e, na ONU, afirmou que “ações ilegais” são “inadmissíveis”.

“Jamais pode o direito à segurança dos cidadãos de um país ser garantido mediante a violação de direitos humanos fundamentais dos cidadãos de outro país. Não se sustentam argumentos de que a interceptação ilegal de informações e dados destina-se a proteger as nações contra o terrorismo”, afirmou.

Temer: defesa do impeachment e questão da Amazônia

Michel Temer discursa como presidente do Brasil, na ONU, em 2018 — Foto: Cesar Itiberê/PR

Quando discursou pela primeira vez na Assembleia Geral da ONU, em 2016, Michel Temer havia acabado de assumir a Presidência em razão do impeachment de Dilma Rousseff.

Apoiadores da petista chamavam o afastamento dela de “golpe” e Temer acabou decidindo usar parte de seu discurso na ONU para defender sua legitimidade no cargo.

“O Brasil acaba de atravessar processo longo e complexo, regrado e conduzido pelo Congresso Nacional e pela Suprema Corte brasileira, que culminou em um impedimento. Tudo transcorreu dentro do mais absoluto respeito à ordem constitucional”, discursou Temer ao abrir a 71ª Assembleia Geral das Nações Unidas.

No ano seguinte, em 2017, o Brasil começou a ser alvo de críticas internacionais após a divulgação de que, em 2016, houve um aumento de 58% no desmatamento na Amazônia.

Temer, então, dedicou seu discurso na ONU, em setembro, para dizer que o governo brasileiro havia tomado providências para proteger a floresta.

“Trago a boa notícia de que os primeiros dados disponíveis para o último ano já indicam diminuição de mais de 20% do desmatamento naquela região. Retomamos o bom caminho e nesse caminho persistiremos”, afirmou.

Mas a fala foi amplamente criticada por utilizar dados imprecisos. Um dos autores de um estudo citado pelo presidente no discurso criticou a forma como os números foram apresentados.

“Estes não são dados oficiais. Os dados do governo ainda não foram divulgados e parece que o presidente está comparando dados oficiais do ano passado com os nossos, de agora, sendo que as metodologias são totalmente diferentes”, afirmou à BBC News Brasil, na época, o engenheiro florestal Paulo Barreto, pesquisador associado do Imazon, ONG que foi mencionada por Temer no discurso.

Estabilidade da política externa

Mariana Kalil, do Centro de Geopolítica da Escola Superior de Guerra, afirma que, no geral, houve continuidade e estabilidade na política externa brasileira desde a redemocratização, embora cada presidente tenha dado enfoque a um ou outro aspecto.

Com relação ao meio ambiente, todos os presidentes brasileiros exigiram de países desenvolvidos uma responsabilidade maior que as nações mais pobres na redução de gases poluentes.

“Sempre houve a defesa de que a proteção deve ocorrer com desenvolvimento, um desenvolvimento sustentável”, disse.

Mas a postura enfática do governo Bolsonaro em defender a abertura de reservas indígenas para mineração, reduzir multas ambientais e ampliar a produção agrícola na Floresta Amazônica colocou o Brasil no centro da pressão internacional.

“O Brasil acaba sendo usado como uma forma de as grandes potências brigarem entre si sem ser diretamente. Ao incluir o Brasil nas discussões sobre meio ambiente em organismos multilaterais, potências contrárias à postura de Donald Trump conseguem marcar posição sem atacar os Estados Unidos diretamente”, opina Kalil.

A professora também destaca a continuidade dos discursos dos presidentes em temas como ampliação do Conselho de Segurança da ONU, redução do protecionismo, resolução pacífica de conflitos, neutralidade na disputa entre potências etc.

Desde que tomou posse, Bolsonaro tem, pelo menos no discurso, indicado mudanças substanciais na política externa brasileira. Será que o discurso vai refletir isso?

“É preciso esperar para ver. Muitas vezes o discurso para o público interno é diferente das ações práticas em política externa”, ressalva Kalil.

Do G1