reprodução TV Justiça

“TV Justiça virou Netflix”, diz professor da FGV

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Não consigo deixar de achar engraçada a reação de grupos compostos por integrantes do sistema de justiça criminal à lei que criminaliza o abuso de autoridade. Se viram forçados diante do espelho; e não gostaram.

Quem sabe de tanto se repetir que servem ao combate ao crime, viram-se autorizados a qualquer tipo de ato, sem maiores repercussões, já que embalados por tão nobre tarefa. De fato, na lógica bélica, o combatente está diante do inimigo, diante de quem quase tudo vale. Agora, temem seres eles os inimigos. Bug no sistema punitivo.

Esse exercício forçado de alteridade merece maior atenção; uma breve psicanálise do poder punitivo, por assim dizer.

A primeira observação, muito simples, é a que os integrantes do sistema punitivo não confiam no sistema. Por que será?

Acredito que as respostas comportam 50 tons de cinza entre dois extremos, a saber, entre os que não confiam no sistema por que os poderosos são mais fortes que o sistema, e os que não confiam no sistema porque sabem como eles operam o sistema.

A todos, digo: bem-vindos ao desconforto da seletividade!

Desde há tempos nós, os garantistas, rotulados de defensores de bandidos, denunciávamos a seletividade do sistema punitivo. Mostrávamos como a população de presos por crimes patrimoniais enegrecia entre o flagrante e os que efetivamente cumpriam pena; como a guerra às drogas mostrava alguma eficiência apenas na seleção dos operadores da ponta; como as efetivas e fundamentais lesões aos direitos fundamentais, a exemplo do extermínios “legalizados” de grupos populacionais, do meio-ambiente e da saúde pública amparados por normas jurídicas de substância questionável, não eram criminalizadas.

Assim, vai preso o jovem negro com 5 gramas de maconha, mas não o jovem branco; é condenado o agricultor que derrubou meia dúzia de árvores de mata ciliar, mas não se incrimina a política que autoriza 500 focos concomitantes de desmatamento da Amazônia; o presidente de uma empresa enorme é intimado em inquérito policial que apura o fato de haver, no laboratório da fábrica, um frasco de cloro de 100mL fora do prazo de validade, mas não responsabilizamos as autorizações crescentes de agrotóxicos, muitos deles banidos das esmagadora maioria das nações nas quais deveríamos nos espelhar; realizam-se diariamente prisões em flagrantes em supermercados, levando os gerentes à Delegacia, por produtos fora da validade, mas sequer se cogita em onerar mais (não criminalizar, insisto) quem produza produtos muito lesivos à saúde, como as bebidas açucaradas.

De fato, muito desconfortável conviver com uma espada sobre nossas cabeças, correndo o risco de sermos criminalizados pela condução de nossas atividades, como dizem algumas associações, diante da criminalização do abuso. Bem-vindos, meus caros, ao mundo do cidadão comum.

A segunda observação, igualmente trivial, é que descobriram que as normais penais são construídas de maneira defeituosa.

Estão muito preocupados com a porosidade dos novos tipos penais, que comportam interpretação muito diversas!

Novamente, bem-vindo ao purgatório dos acadêmicos, meus caros.

Faz mesmo tempo que afirmamos que o tipo de gestão temerária é vago demais, já que – vejam só que coincidência – não separa atividades arriscadas típicas de operações financeiras, das que são criminosas. Mas o sistema achou que era exagero e não era o caso de tê-la por inconstitucional.

Também denunciamos como expressões que jogam toda a carga criminalizadora para normas administrativas – a exemplo de “em desconformidade com norma regulamentar”- deturpava a natureza do crime, transferida, muitas vezes, aos diversos executivos municipais, ou a órgãos hierarquicamente muito inferiores da Administração. Mas o sistema achou ok.

Insistíamos que em qualquer crime é preciso haver ofensividade ao bem jurídico, seja sob a forma de dano, seja sob a de perigo, ainda que ex ante, nos de perigo abstrato. Mas não adiantou muito; a quantidade de papel para imprimir as sentenças e acórdãos que se satisfazem à mera adequação formal dos fatos ao tipo objetivo, sem quaisquer dilações quanto à ofensividade – ou mesmo especial fim de agir – dizimariam, por fim, a Amazônia.

Poderia seguir por horas a fio com exemplos de como, no Brasil, la dogmática soy yo, segundo parte dos julgadores. Acho até que um se sentiu confortável o suficiente para dizê-lo em acórdão; isso, por escrito mesmo.

Faço, assim, uma última observação, prometo. Descobriram que o sistema é deletério mesmo quando não haja prisão.

É que os novos tipos não darão cadeia. Isso porque não têm pena máxima maior de 4 anos; para os primários, isso é regime aberto. Como não há, na esmagadora maioria das vezes, uso de violência, podem ser substituídos por penas alternativas. E pensar que isso já foi chamado de “passar a mão na cabeça de bandido”, por exemplo, quando o Supremo autorizou essa figura para pequenos traficantes, primários e que não integrem organização criminosa.

Aliás, muitos poderão ser resolvidos com transação. E todos dão direito à suspensão condicional do processo.

É verdade que a lei prevê a perda do cargo, ou seu afastamento por 1 a 5 anos; mas calma. Isso só para reincidente específico!

Vejam só que pilhéria: o sujeito pode, a cada 5 anos, cometer um abuso de menor potencial ofensivo; alternativamente, um abuso de autoridade “normal”, desde que entre o cumprimento da pena e a nova infração tenham decorrido 5 anos. Ah, se fosse para um tipo para o cidadão comum…

Chega de observações.

Passarei a estocar milho para pipoca; é que eu quero ver – e os receberei de braços abertos – a adesão sem graça, acabrunhada, ao garantismo penal.

Agora o especial fim de agir não vai mais poder ser resumido a frases do tipo “o dolo se depreende da ação voluntária do sujeito”, no tipo do artigo 89 da lei de licitações; vão ter que levá-lo a sério, já que todos os novos tipos requerem o especial fim de prejudicar alguém.

Também vai ressurgir, revigorado, o cambaleante princípio da legalidade. Relembrarão a importância de interpretação fechada dos tipos penais. Como é mesmo aquela história de vedação à analogia in malam partem?

Talvez terei a chance de ver uma discussão efetiva sobre inconstitucionalidade por ausência de lesividade a bem jurídico. Mas é pouco provável; até aqui, os incidentes de inconstitucionalidade julgados em tribunais são majoritariamente contra normas despenalizadoras, como o indulto. Ao menos uma exceção digna de nota: a decisão do STJ que considerou inconstitucional a pena do art. 273, §1º, do Código Penal.

Que gostoso será assistir a discussões sobre ônus da prova e justa causa; nesses casos, invocarão mesmo o pas de nulité sans grief?

A TV Justiça e os informativos de jurisprudência serão, para mim, uma espécie de série da Netflix.

Pensei em quilos de memes ao longo do texto, e me segurei. Não resisto encerrar o texto com um de que gosto muito: karma is a bitch.

Davi Tangerino é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

De CONJUR