JUAN IGNACIO RONCORONI/EPA

Fim do neoliberalismo argentino será dramático

Todos os posts, Últimas notícias
JUAN IGNACIO RONCORONI/EPA
JUAN IGNACIO RONCORONI/EPA

Em recessão há mais de um ano, com o peso a perder 70% do seu valor e a inflação acumulada de 2019 a chegar em Setembro a 37,7%, mesmo com as políticas de austeridade impostas pelo FMI em troca do maior empréstimo da sua história, Mauricio Macri parece ter os dias contados como Presidente da Argentina.

Todas as sondagens dizem que os argentinos se preparam para confirmar neste domingo o que já tinham feito nas eleições primárias de Agosto, fechar o ciclo Macri e abrir as portas ao regresso do “factor K” à Argentina, embora a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner seja agora apenas a candidata a vice-presidente de Alberto Fernández.

Fernández foi chefe de gabinete (equivalente a primeiro-ministro) em todo o mandato de Néstor Kirchner (falecido em 2010) e durante um ano de Cristina Fernández e, tal como eles, é da ala mais à esquerda desse grande movimento político populista chamado peronismo, que desde os anos 1950 faz parte intrínseca da história do país. Desentendeu-se com a então Presidente e abandonou o poder, voltaram a acertar o passo agora com vista a esta eleição.

Se em Agosto Fernández ganhou as eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias (PASO) com 16,5% de vantagem para Macri, para grande surpresa de todos, porque as sondagens apontavam diferenças mais apertadas, desta vez todos os inquéritos de opinião dão ao candidato peronista da Frente de Todos mais de 20% de vantagem.

De acordo com a lei eleitoral argentina, se um candidato superar 45% dos votos ou mais de 40% com dez pontos percentuais de diferença para o segundo é considerado vencedor sem necessidade de uma segunda volta.

Virar a página

“Vamos virar esta página e começar a construir outro país. Acabou-se a Argentina privilegiada e aquela que padece, a que tem vantagem e que sofre. Vamos construir uma nova história a partir de 10 de Dezembro, não com a chegada de Alberto e Cristina ao poder, mas sim com a chegada de todos os argentinos ao governo”, disse Fernández no comício de quinta-feira, em Resistência, província de Chaco, no Nordeste do país.

Ao lado de sete governadores, falou num país que sofreu de tudo, incluindo “assassínios, perseguições, torturas e uma guerra” e sempre se conseguiu reerguer: “A partir de 10 de Dezembro vamos protagonizar a epopeia de nos pormos de pé quando outros puseram a pedra para que caíssemos”.

Para o comentador político Jorge Rial, “Macri desperdiçou uma grande oportunidade histórica” quando chegou ao poder em 2015, depois de 12 anos do casal Kirchner. Em declarações ao canal A24, Rial explicou que, apesar das condições que tinha, o Presidente, “talvez por pressões, deu prioridade a que tanto ele como os seus amigos recuperassem direitos e bens que acreditavam ter perdido durante os últimos anos”.

Sob o lema “Sí, se puede” (sim, é possível), o chefe de Estado tentou de tudo para contrariar a ideia da derrota anunciada que ficara das eleições de Agosto, desdobrando-se em medidas e empenhando-se numa campanha desgastante que o levou a dar 32 comícios desde 28 de Setembro. Terminando esta sexta-feira na província de Córdoba, onde conseguiu os melhores resultados nas primárias (foi mesmo o único distrito eleitoral onde o Juntos pela Mudança ganhou e com números expressivos, 47,9%, contra 29,7% da Frente de Todos).

“Somos uma maioria que passou muitos anos em silêncio”, afirmou Mauricio Macri à multidão que se juntou para o ouvir quinta-feira em Mar del Plata, na província de Buenos Aires. Uma maioria que tinha “medo” do peronismo e “olhava a política de longe, pensando que nada iria mudar” e permitiu que chegasse ao poder “gente que acreditou ser dona do Estado e que quis ficar com tudo e até com a nossa liberdade”, acrescentou o Presidente, agitando o fantasma do populismo peronista.

Sí, se puede e o Se da vuelta, os hinos de campanha do Juntos pela Mudança, foram cantados em coro ao longo de quase um mês de campanha, com os apoiantes ajudados por pequenos panfletos com a letra, distribuídos como se fossem orações de missa, escreve o conservador La Nación, insuspeito de tendências peronistas. “Se da vuelta, Mauricio da la vuelta”, cantado com a base do “It’s a Heartache, de Bonnie Tyler, tornou-se cantoria obrigatória neste troço de campanha em que o desconsolo tomava conta das hostes do Presidente, recandidato a um segundo mandato.

Um desconsolo que Macri – herdeiro de uma das maiores fortunas da Argentina, que ganhou popularidade sendo o presidente do mais popular clube argentino, o Boca Juniors e se iniciou na política ganhando o governo da cidade de Buenos Aires – não parece ter sido capaz de inverter, nem nos comícios (por falta de capacidades oratórias e carisma para empolgar multidões), nem nos debates televisivos, onde acabou sempre superado pelo seu mais directo rival.

Reprovação maciça

No segundo debate entre os candidatos (são seis ao todo, mas só dois têm hipóteses verdadeiras; o antigo ministro da Economia, Roberto Lavagna, surge em terceiro com 6% de intenções de voto, enquanto os outros não superam os 2%), Macri tentou inverter a tendência do primeiro, tomando a iniciativa e recorrendo à agressividade, enquanto Fernández foi cauteloso. O resultado foi o mesmo.

De acordo com uma sondagem da Raúl Aragón & Asociados, feita logo a seguir ao debate deste domingo na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, 44,2% deram a vitória a Fernández e 33% a Macri.

Para mal dos pecados do actual chefe de Estado, a situação económica argentina e a sua aparente incapacidade política para inverter a crise pesa mais no eleitorado do que o fantasma de regresso de Cristina Fernández ao poder.

Com um nível de aprovação de 38% (o do Governo é de 30,9%), não admira que Macri pareça incapaz de mudar o rumo e obrigar Fernández a uma segunda volta. O rival peronista tem uma taxa de aprovação de 53,3% e mesmo Cristina Fernández de Kirchner, com todos os seus anticorpos, supera os 51% de opiniões positivas.

Segundo a sondagem de Gustavo Córdoba, citada pelo jornal Clarín, 64,6% dos inquiridos discorda da ideia “Macri deveria ser reeleito” e só 30,1% defende que irá votar em Macri “para que Cristina não regresse ao poder”.

Macri tem pedido tempo aos argentinos para que os seus sacrifícios se vejam recompensados, continuando a defender as políticas de austeridade que lhe foram impostas em contrapartida da ampliação para 5700 milhões de dólares (5124 milhões de euros) do empréstimo do FMI. Mas aparentemente não consegue convencer um eleitorado que, a julgar pela sondagem, está convencido que “Alberto Fernández vai melhorar a economia” – pelo menos 49,2% dos inquiridos assim o dizem.

Até o mundo do futebol veio dar uma perninha na política (o que no caso de Macri, com nome feito no futebol, acaba por ter peso) e mais de 200 jogadores, ex-jogadores e treinadores assinaram uma carta aberta em apoio a Fernández divulgada esta quinta-feira.

“Estes últimos anos quiseram convencer-nos que este ajuste disfarçado de sacrifício altruísta a que foi submetida a maioria do povo argentino, e do qual não estamos isentos, nós e as nossas famílias, seria recompensado no futuro. Mas, pelo contrário, é apenas o reverso do enriquecimento de pequenos grupos ligados à especulação financeira, às empresas privadas de serviços e ao rendimento agro-pecuário”.

Para a gente do futebol que assina a carta, “chegou o momento de começar a transitar o complexo caminho da reconstrução da nossa pátria, mais uma vez” e esse processo passa por apoiar a proposta “liderada por Alberto Fernández e Cristina Fernández”.

PÚBLICO