Governador tucano mudou lei para beneficiar procurador

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Foto: Daniel Carvalho/Folhapress

O governador de Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB), editou em 2016 uma lei sob medida para que um procurador fosse cedido ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em Brasília.

Para autorizar a mudança de Leonardo Campos Soares da Fonseca da cidade de Paranaíba (MS) para a capital federal, a nova lei, sancionada no dia 20 de setembro, retroagiu a 2 de agosto daquele ano.

Leonardo, 29, é filho de Reynaldo Soares da Fonseca, ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) —cuja Corte Especial é responsável por julgar processos contra Azambuja.

O Governo de Mato Grosso do Sul afirma que sua requisição ao TSE “decorreu de expressa previsão” do código eleitoral, “que tem caráter nacional e que certamente provocou a edição” da lei “aprovada pelo Parlamento estadual”.

Essa versão foi formalmente contestada pela própria Procuradoria do Estado, já que Leonardo não foi requisitado. Sua transferência aconteceu em resposta a uma consulta do então presidente do TSE, Gilmar Mendes, também ministro do STF. No cabeçalho do ofício encaminhado por Gilmar ao Governo de MS, o assunto descrito é “cessão de servidor”.

A Lei Orgânica da Procuradoria sofreu duas alterações para permitir a transferência de Leonardo a Brasília. Pelo seu artigo 79, “pedidos de afastamento para estudo, para servir em outro órgão ou entidade e para trato de interesse pessoal somente serão concedidos após período de estágio probatório”, que é de 36 meses.

Como Leonardo tinha sido nomeado procurador no dia 24 de setembro de 2015, pouco mais de dez meses antes de ser colocado à disposição, esse artigo ganhou um adendo: “O disposto do caput deste artigo, quanto ao pedido para servir em outro órgão ou entidade, não se aplica no caso de solicitação do Tribunal Superior Eleitoral”.

Outra mudança na lei diz respeito à fonte de pagamento. Pela regra até hoje em vigor, “a cedência [de servidores] ocorrerá sem remuneração ou mediante ressarcimento e de encargos que forem pagos durante seu afastamento”.

A lei sancionada por Azambuja incluiu, porém, um novo trecho ao texto: “exceto quando se destinar ao Tribunal Superior Eleitoral”. Graças a essa nova redação, Leonardo foi transferido de Parnaíba (a 411 km de Campo Grande) para Brasília com os custos a cargo do Governo de Mato Grosso do Sul.

Ganhando R$ 25,3 mil brutos, Leonardo chegou a receber outros R$ 15 mil mensais a título de horas extras, somando R$ 32 mil líquidos, segundo informações do Portal da Transparência.

Azambuja colocou Leonardo à disposição do TSE em 2 de agosto, data em que passou a valer, de forma retroativa, a mudança na legislação. Por meio de decretos, a cessão do procurador ao tribunal foi prorrogada até dezembro de 2018. Em janeiro de 2019, ele passou a trabalhar na representação da Procuradoria do Estado em Brasília.

A alegação da gestão Azambuja de que Leonardo tinha sido requisitado foi contestada pela Procuradoria-Geral de Mato Grosso do Sul quando ele entrou na Justiça para ter direito à promoção por antiguidade e aquisição de férias, mesmo afastado. O órgão se manifestou contrariamente, afirmando que seu afastamento “tem natureza jurídica de cessão”.

Outro argumento é que as requisições feitas pela Justiça Eleitoral, frequentes durante eleições, atendem ao critério da impessoalidade.

O governador de Mato Grosso do Sul é alvo de dois inquéritos que tramitam no STJ como desdobramento da operação Vostok, fruto da delação da JBS, que apura suposto pagamento de R$ 67 milhões em propina em troca de benefícios fiscais concedidos a empresas no estado.

No mês passado, a Polícia Federal fez um mutirão em cinco estados para colher depoimentos ligados ao caso, ouvindo 110 pessoas, incluindo a mãe e o irmão do tucano. Azambuja negou irregularidades à imprensa e disse que a verdade prevalecerá.

Procurado pela reportagem, o ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca afirmou não ter pedido que o então presidente do TSE, Gilmar Mendes, consultasse o governo de Mato Grosso do Sul sobre a possibilidade de transferência do filho para Brasília.

“O ministro tem dois filhos já com atuação profissional (ambos concursados) e um terceiro ainda estudante universitário. Não atua ou interfere nas carreiras acadêmica e jurídica deles”, diz a nota encaminhada por sua assessoria.

O comunicado diz ainda ser “importante lembrar que o foro para processar criminalmente” o governador de estado é a Corte Especial do STJ, “órgão ao qual o ministro Reynaldo nunca fez nem faz parte”.

Questionada sobre a hipótese de se declarar impedido em processos contra Azambuja, a assessoria de Reynaldo afirmou que “por expressa determinação legal” o ministro “está impedido de funcionar em processo em que seu filho atue como parte ou advogado”.

Já a assessoria do ministro Gilmar Mendes informou que ele recebeu e recebe diversos currículos de servidores públicos que se candidatam a vagas nesses tribunais. Ainda segundo o gabinete, “a avaliação dos currículos segue critérios objetivos”.

“Durante o período em que o ministro Gilmar Mendes exerceu a Presidência do TSE, foram realizados inúmeros pedidos de cessão que tinham por objetivo atender às demandas das unidades do tribunal. Nesses procedimentos, cabe ao órgão de origem do servidor –e não ao TSE– verificar o cumprimento dos requisitos para a cessão”, afirma.

A assessoria de Gilmar diz ainda que, no caso específico da cessão de Leonardo, o TSE foi apenas cientificado pelo órgão de origem quanto à autorização.

“Desse modo, enquanto presidente do TSE, o ministro Gilmar Mendes não foi informado pelo órgão de origem sobre a pendência de estágio probatório, tampouco sobre as circunstâncias específicas que viabilizaram a cessão”, conclui.

Em email enviado à Folha, Leonardo cita a lei 8.112/90, dedicada ao servidores públicos da União, e uma resolução do TSE de 2017 para defender que a lei complementar estadual “apenas se adequou ao código eleitoral (lei nacional), inclusive quanto ao período do estágio probatório”.

“Vale lembrar que toda requisição eleitoral é irrecusável, e que toda cessão para a Justiça Eleitoral é uma requisição, pois o dispositivo do código eleitoral é único”, afirmou.

Segundo ele, “vários são os casos de servidores públicos em estágio probatório cedidos para o exercício de cargo em comissão nas administrações federal, estaduais e municipais”.

Ainda segundo ele, “vários são os casos de magistrados e outros agentes públicos (cargos isolados) em estágio probatório requisitados para auxílio aos tribunais superiores, inclusive ao STF”. “Demonstração de que se trata, portanto, de procedimento legal”, afirma.

Folha