Marcha dos boçais: bolsonarismo quer dirigismo na cultura.

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Foto: Reprodução

Não existe “censura” entre privados. Pode haver desacordo de vontades, autoritarismo, burrice, ignorância militante, essas coisas. Mas se pode e se deve falar em “censura” quando há dinheiro público na relação e quando este é usado para um “index” — um índice dos artistas e dos temas proibidos.

A Folha informa que a Caixa Econômica Federal impõe hoje que a seleção de projetos culturais traga a especificação do tema a ser tratado. Ok. Até aí, entendo que faz sentido. Além do tema, é razoável que se tenha uma sinopse do bem cultural que vai ser patrocinado e até mesmo um histórico profissional do artista ou do grupo.

Isso tudo poderia significar apenas cuidado com o dinheiro público.

Não quando se trata do governo Bolsonaro e de seus iluministas das trevas. Também é preciso pesquisar a atuação dos artistas nas redes sociais para saber como eles se posicionam sobre isso ou aquilo. Vale dizer: a CEF, sob Bolsonaro, só aceita patrocinar bens culturais e pessoas “com viés ideológico”. Qual viés? O do poder.

A arte é, por natureza, o espaço da transgressão porque ela mesma representa o rompimento dos limites da denotação. Toda arte é interpretação — até aquela que se compraz em negar a natureza do próprio trabalho artístico, como faz Fernando Pessoa com os heterônimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis.

Toda arte é, por natureza, de contestação e tem um valor disruptivo — e essa disrupção, vejam que coisa!, pode até ter um caráter conservador ou reacionário no sentido de um resgate dos valores do passado, o que pode significar uma crítica dura ao presente. O mais brilhante dos Fernandos Pessoas, entendo, é o “ele-mesmo”. E seu reino já não tinha mais presente.

Inexiste, em suma, arte que seja pura justificação do presente: “Olhem, as coisas são assim mesmo, isso é muito bom, e atingimos o topo da experiência existencial, moral, espiritual etc.” Inexiste grande obra com esse perfil. Mesmo o monumental Virgílio, um poeta financiado pelo poder, foi muito além daqueles que lhe garantiram a boa vida para viver da escrita.

CENSURA VERGONHOSA

O que está em curso na CEF é censura vergonhosa.

O Ministério Público Federal deveria se interessar pelo assunto.

Sempre vi com reservas, e os leitores sabem disto, o patrocínio da arte por entes do Estado — seja ele mesmo, seja por intermédio de estatais, como é o caso.

A suspeita de dirigismo está sempre presente. Ao mesmo tempo, reconheço a dificuldade que enfrentam artistas, muitos deles de qualidade, para fazer chegar ao público a sua necessária leitura do mundo.

A questão é e será sempre delicada. Já vi, sim, tendência ao dirigismo cultural quando esses aparelhos estavam sob a influência ou o comando das esquerdas. E fiz a crítica no seu devido tempo.

O “bolsonarismo” e a escória cultural que a ele se associa, como resta óbvio, não se opunham ao viés esquerdizante do passado por amor à liberdade. Antes, era por apreço à ditadura que o faziam: a sua.

Um retrato deste tempo é o ataque boçal que o dramaturgo Roberto Alvim, diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, desferiu contra a atriz Fernanda Montenegro. Agora ele é um soldado da guerra cultural contra as esquerdas. E fala com a fúria de um neoconvertido que ganhou um aparelho estatal de presente.

É importante que se documentem todas as agressões às liberdades individuais e à liberdade de pensamento que passaram a fazer parte do nosso cotidiano.

Que cada pessoa comprometida com a liberdade se encarregue, em sua área, de fazer essa documentação.

Temos de ter o roteiro do horror e da estupidez.

É preciso tentar ao menos vencer as tentações do servilismo. Agora e no futuro.

Reinaldo Azevedo, jornalista, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM. É autor de “Contra o Consenso”, “O País dos Petralhas I e II”, “Máximas de um País Mínimo” e “Objeções de um Rotweiler Amoroso”.

Reinaldo Azevedo