Óleo: The Intercept denuncia exploração de voluntários

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Foto: Anderson Stevens

Manchas escuras estão nas roupas e no corpo de Laudinete Maria da Silva, 36 anos. Ela carrega luvas de plástico sujas pelo petróleo. As marcas emocionais também estão evidentes no choro e no desabafo furioso que a moradora local fez diante de mim na praia de Suape, município do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, na quarta-feira. A imprensa estava ali para acompanhar a visita do Arcebispo de Olinda e Recife às populações impactadas pelo maior desastre ambiental da costa brasileira – e um dos maiores da história do Brasil, cujas consequências ainda são desconhecidas.

Laudinete está exausta. Todos nós, nordestinos, também estamos cansados da falta de explicações e de soluções diante desta tragédia nacional. Quando conheci a pescadora, o óleo que já contaminou dez municípios pernambucanos e mais de 80 no Nordeste não dominava mais o cenário paradisíaco da praia de Suape, de mar calmo e areia branca. “Tiramos tudo sozinhos”, me contou, indignada. Mais de dez toneladas do material foram retiradas somente desta praia desde o domingo passado, segundo os voluntários.

Desde que a mancha tóxica retornou a Pernambuco, no dia 17, a moradora da praia de Suape deixou tudo de lado para se unir aos mutirões de voluntários que trabalham na limpeza da orla. “Quem está levando minhas filhas para a escola é minha mãe. Estou aqui fazendo minha obrigação, limpando [o lugar] de onde tiro o meu pão”, contou Laudinete. Ela é mãe de duas meninas, uma de 10 e outra de 14 anos, sustentadas com a pesca de mariscos.

A cada nova praia afetada, mais imagens de pessoas removendo as imensas porções de óleo com as próprias mãos circulam pelas redes sociais. Mostram corpos desprotegidos lutando contra massas densas que queimam e irritam a pele. Na quinta-feira, 17 de outubro, o óleo chegou à Ilha de Itamaracá, no Litoral Norte do estado. Segundo o secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, José Antônio Bertotti, 900 toneladas de resíduos (que misturam óleo e areia) foram retiradas apenas da costa do estado até agora. No Nordeste, no total, foram mais de mil toneladas, segundo a Marinha.

Em visita a Pernambuco no começo desta semana, o ministro Ricardo Salles desceu do helicóptero por tempo suficiente apenas para fazer fotos. Ficou dez minutos na praia de Itapuama, Litoral Sul. “Seguimos limpando as praias com eficiência”, ele declarou, elogiando o trabalho dos voluntários. Sua “eficiência” foi a demora de 41 dias para tomar uma atitude e acionar o Plano Nacional de Contingência. Seu colega no partido Novo, João Amoêdo, seguiu o coro e parabenizou os voluntários, que estão dando um “show de cidadania” ao limpar as áreas “antes do governo federal tomar as iniciativas necessárias”.

Os membros do Novo, no entanto, esqueceram duas coisas: os voluntários não têm alternativa para sobreviver senão limpar o mar, que é de onde tiram o seu sustento. E, para isso, estão colocando a vida em risco.

Ação no improviso

Equipes dos órgãos públicos estão envolvidas nas ações de limpeza, mas, na maioria das vezes, são os voluntários que chegam primeiro às praias contaminadas. Os grupos se articulam pelo Whatsapp, arrecadam dinheiro em vaquinhas virtuais, mobilizam doações de equipamentos, água e comida para manter o ritmo intenso das atividades. Fazem tudo isso mesmo sem treinamento adequado. O Plano Nacional de Contingência deveria dar orientações, equipamentos de proteção e a estrutura necessária para essas ações – mas nada disso acontece na escala necessária.

“O produto é tão tóxico que as luvas duram apenas algumas horas”, me contou Laurineide Santana, da Pastoral dos Pescadores de Pernambuco. Ela participou de um mutirão de limpeza na ilha de Cocaia, no Cabo de Santo Agostinho, onde as mulheres usaram pás para cortar o óleo espesso e colocar nos barcos. Eles receberam luvas e sacos do Ibama, do governo estadual e da prefeitura local.

O material encontrado nas praias é petróleo cru, rico em hidrocarbonetos cancerígenos. Também pode causar asfixia em altas concentrações. A curto prazo, gera problemas dermatológicos e respiratórios. A longo, pode gerar problemas neurológicos e alguns tipos de câncer, como leucemia. Em Pernambuco, pelo menos 17 voluntários foram socorridos com intoxicação por contato com a mancha em São José da Coroa Grande, no Litoral Sul de Pernambuco, segundo informações da secretaria municipal de Saúde. O governo federal só reconheceu situação de emergência em 17 de outubro no município.

Muitos voluntários relataram náuseas, irritações, dores de cabeça, desmaios e feridas na pele. Muitos mostraram cortes e alergias pelo corpo durante minha visita pelas praias do Litoral Sul. E, ao que tudo indica, estamos vivendo apenas as primeiras dores dessa tragédia que continuará nos impactando por gerações.

Na praia de Itapuama, os equipamentos de proteção só chegaram de tarde, depois de muitas denúncias dos voluntários, que removeram mais de cinco toneladas de óleo sozinhos. O Exército, que somente há dois dias foi enviado pelo governo federal para reforçar ações, chegou tarde. “Quem tirou o óleo do mar foi a sociedade civil. Quando os soldados chegaram, às 15h, o produto estava apenas nas pedras”, contou Bárbara Lima, do movimento Pernambuco sem Lixo.

“O Exército não está fazendo 0% do que os voluntários estão”, afirmou Daniel Galvão, coordenador do movimento Salve Maracaípe. O grupo integra os comitês de crise, que envolvem governos e sociedade civil para organizar ações.

Mas Daniel desconstrói a imagem do voluntário herói, que de certo modo esconde a narrativa mais importante: é a da responsabilização do poder público pela omissão diante do crime ambiental. “Não existe essa figura do herói. Existe um esforço coletivo diante da ineficiência do governo. As pessoas estão tomando atitudes porque entendem a gravidade do problema. Sabem que a rapidez na remoção do óleo é fundamental para reduzir a contaminação do ecossistema”, destacou.

As boias de contenção, instaladas pelo governo para barrar a entrada do produto em mangues e rios, não se mostraram efetivas porque, em contato com a água salobra (que tem mais sais do que a água doce, mas menos do que o mar), as manchas submergiram. Mesmo na água salgada, resíduos do óleo já foram encontrados no fundo do mar, depositados sobre os corais, que servem de alimento para várias espécies marinhas. Ou seja, há risco de contaminação de peixes e crustáceos.

A culpa é da Venezuela (ou do Greenpeace)

Até agora, ninguém tem certeza da origem do material. Embora análises da UFBA, a Universidade Federal da Bahia, mostrem que a provável origem é venezuelana, o país vizinho nega qualquer tipo de envolvimento com a tragédia. Ninguém sabe se a origem foi, por exemplo, um navio fantasma, que transportava petróleo de forma irregular.

Barris da Shell foram encontrados em meio ao material. A Marinha, inicialmente, descartou a conexão entre os dois – mas um pesquisador da UFS, a Universidade Federal de Sergipe, usando um método alternativo, percebeu que pode haver semelhança entre os materiais.

“Nós aplicamos uma técnica com um nível de seletividade maior por considerar estranha a presença deste material coincidentemente no mesmo período”, disse ao Intercept Alberto Wisniewski, doutor em Química Analítica e coordenador do Grupo de Pesquisa em Petróleo e Energia da Biomassa do laboratório da UFS. “Quando analisado nas condições padrão, não se pode aferir relação entre os produtos, porém com um método mais específico podemos encontrar indícios de origem.”

Os barris analisados por Wisniewski têm selo da Shell, mas a hipótese é de que tenham sido reaproveitados. Há ainda anotações manuais e informações nos rótulos que dão pistas sobre a origem do óleo. O pesquisador se reuniu na semana passada em seu laboratório, a portas fechadas, com Ricardo Salles. Segundo ele, foi uma “conversa técnica”.

“Apresentei os dados que obtivemos que demonstravam que não poderia se descartar que os barris estiveram no mesmo ambiente do vazamento do óleo”, ele disse. Ainda segundo o pesquisador, a Polícia Federal e a Marinha assumiram a investigação dos indícios apontados por ele.

Apesar das investigações em andamento, o governo federal parece não ter dúvidas sobre a origem do óleo. Na quarta-feira, Salles fez um pronunciamento na TV falando que o Brasil vai “acionar a Organização dos Estados Americanos, a OEA, para que a Venezuela dê explicações sobre o óleo nas praias brasileiras”. O ministro sustenta a narrativa de que o óleo é de origem venezuelana, mas não explica como o produto teria chegado à costa brasileira. Em um tuíte, a Secretaria de Governo chegou a sugerir que o vazamento no Brasil é equivalente a um “ataque militar”.

Nesta quinta, o ministro foi além: postou no Twitter que o navio do Greenpeace (chamado por ele de #greenpixe) estava passando pela costa brasileira, sugerindo que a ONG ambientalista poderia ser responsável pelo derramamento de óleo “venezuelano”.

Enquanto transforma a questão em guerra e teorias da conspiração, tentando capitalizar politicamente sobre ela, o governo continua sem conseguir prever a real dimensão e o impacto da tragédia. Com a falta de esforços do governo, é impossível saber se o óleo continuará aparecendo nas praias, quanto foi derramado no mar e se ele continua sendo despejado. O governo estimava que, no fim de outubro, o problema já estaria perto do fim – mas manchas voltaram a aparecer, principalmente em Pernambuco. Também não é possível saber exatamente quais impactos são esperados nos ecossistemas atingidos e na saúde da população em curto, médio e longo prazos. Pesquisadores dizem que a contaminação pode persistir por décadas e afetar toda a cadeia alimentar.

Até agora, quase dois meses depois do início dos vazamentos, o presidente Jair Bolsonaro sequer fez uma visita ao Nordeste para acompanhar a situação de perto. Como ele e o vice, Hamilton Mourão, estão fora do país, a região receberá pela primeira vez um presidente, ainda que interino – David Alcolumbre, presidente do Senado, visitará nesta quinta-feira Alagoas e Sergipe. Exatamente 54 dias depois que a primeira mancha de óleo apareceu no Sul da Paraíba.

The Intercept