Bolsonaro adere ao Neopopulismo, dizem especialistas

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Fazer reforma da Previdência, cogitar criar imposto e tentar favorecer o próprio filho com um cargo público não soam como medidas populares. Ainda assim, Jair Bolsonaro, 38º presidente da República, veste o figurino do populismo, afirmam analistas ouvidos pelo Valor.

O capitão de reserva cumpre requisitos do “check-list” para se definir o que é um populista: sustenta discurso e comportamento de um “outsider” antissistema; alimenta uma relação carismática com seu eleitorado – que é difuso e recém-chegado na política -; e procura, sempre que possível, exercer o poder passando por cima das instituições que fazem contrapeso ou moderação ao Poder Executivo, como o Congresso, o Judiciário, as organizações civis, a imprensa e os partidos políticos.

“Não por acaso Bolsonaro passou por vários partidos, e o último, que o elegeu, o PSL, ele detonou e levou ao colapso”, afirma o professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) José Álvaro Moisés, doutor em ciência política.

Neste primeiro ano de governo, a aprovação de Bolsonaro caiu três pontos percentuais e a rejeição subiu seis pontos, de acordo com levantamentos do Datafolha entre abril e dezembro. O do dia 6 mostrou que 36% dos brasileiros consideravam o governo ruim ou péssimo e 62%, regular, bom ou ótimo.

Bolsonaro, contudo, tem outros meios de testar sua popularidade. Sai de motocicleta na rua, desce ao campo em jogos de futebol e aparece de surpresa em feiras de rua. Por enquanto, o presidente e sua equipe de seguranças conseguiram circular sem sobressaltos – à exceção de vaias nos estádios do Mineirão, em Belo Horizonte, e do Maracanã, no Rio de Janeiro.

A tática é amplificada com o uso frenético das redes sociais, onde os passeios de Bolsonaro são exibidos. É no ambiente digital também que, desde o terceiro mês de governo, o presidente transmite toda quinta-feira uma “live” no Facebook, com informes, ataques a quem é considerado adversário e consultas aos internautas sobre decisões que Bolsonaro deve ou não tomar, como foi o caso do fundo eleitoral aprovado pelo Congresso dentro do Orçamento 2020.

“Não tenho a menor dúvida em classificar Bolsonaro como um político populista. É um populista conservador de direita, com mentalidade autoritária”, afirma Moisés, da USP.

“Mas é um populismo diferente da tradição mais usual brasileira, como Getúlio Vargas e Jânio Quadros. No passado, havia um conteúdo social muito forte. Agora não.”

Presidente busca exercer o poder sem mediação e contrapeso de instituições como Congresso e Judiciário Vargas, por exemplo, foi o responsável por implantar uma abrangente política de direitos sociais e trabalhista. Bolsonaro é o representante brasileiro do que estudiosos chamam de “neopopulismo”.

As diferenças começam pelo uso da internet como ferramenta para comunicação direta com os eleitores. Mas vão além. É difícil prover uma rede de proteção social para os mais pobres em tempos de crise econômica e fiscal. Mais ainda com o ultraliberal Paulo Guedes como ministro da Economia. Nesse primeiro ano de governo, perderam ímpeto programas como o Minha Casa, Minha Vida, de habitação popular, Bolsa Família, de renda mínima, e Mais Médicos, de saúde para populações de municípios distantes dos grandes centros.

Segundo o PhD em ciência política Raphael Neves, professor de direito constitucional da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pauta conservadora serve de antídoto.

“O país está em crise. A capacidade de o Estado prover uma rede de proteção para as pessoas fica enfraquecida. Daí o discurso da direita em defesa da família. É a família que vai proteger as pessoas e amparar os necessitados.” Essa família, porém, não é qualquer família, mas aquela formada por um casal heterossexual e seus filhos.

“É uma concepção de família bastante rígida. Se foge daquela definição, é considerada uma ameaça. A ‘família’ proposta pela direita encarna certos valores em torno dos quais devemos nos manter unidos e nos proteger”, afirma Neves, que também é pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap), de São Paulo.

É nesse ponto que o discurso de Bolsonaro se conecta com o de religiosos que deram púlpito para a vitória dele nas eleições de 2018. Judith Teichman, professora de ciência política e desenvolvimento internacional da Universidade de Toronto, aborda a relação entre o neopopulismo e a situação econômica por outro aspecto.

A PhD associa a ascensão do populismo à impossibilidade de se estabelecerem pactos sociais. “A economia não cresce. E isso torna cada vez mais difícil criar pactos sociais, consensos. Sob uma enorme polarização política dos partidos de esquerda, uma parte da população, as classes médias, fica raivosa, nervosa e insegura. E nesse contexto aparece a mobilização do populismo da direita”, analisa Judith.

Para a professora canadense, porém, o caminho neoliberal proposto pelo governo Bolsonaro não deve ajudar na construção de pactos sociais daqui para frente. “O neoliberalismo, que é visto pelo governo atual como caminho de prosperidade e crescimento, tem se mostrado excludente em todo o mundo. E pessoas excluídas sentem raiva”, diz Judith Teichman.

O caráter emocional despertado por Bolsonaro é outra característica que o assemelha a outros líderes populistas. Doutora em antropologia social, a professora do Núcleo de Etnografia Urbana da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) Isabela Oliveira Kalil dedica-se há seis anos a estudar o desenvolvimento de movimentos conservadores no Brasil.

Ela mapeou como o discurso de Bolsonaro conquistou diferentes públicos e identificou um sentimento estimulado pelo líder: o medo. “Houve a construção e a personificação de um inimigo comum, corporificado na figura do ‘comunista’”, afirma Isabela. “O discurso de Bolsonaro mexe com diferentes afetos, mas, sobretudo com o medo. Medo da chamada ‘ideologia de gênero’, medo de o Brasil ‘se tornar uma Venezuela’ ou ainda de acontecer uma crise financeira sem precedentes. Do ponto de vista simbólico, Bolsonaro encarnou na campanha e encarna no governo a figura forte e masculina que protege a nação destes riscos.”

O discurso de Bolsonaro que, pelo Brasil e por Deus, vale tudo – inclusive atacar e ameaçar quem é considerado “inimigo” -, cumpre mais um requisito populista: o autoritarismo. “Na democracia, não existe inimigos, mas adversários”, pondera José Álvaro Moisés, da USP. Raphael Neves, da Unifesp, afirma que o populismo se apresenta, no pós-Segunda Guerra Mundial, com a queda do fascismo, como uma forma mitigada de autoritarismo.

“Há, assim, uma perda qualitativa da democracia, porque as instituições de mediação estão sendo atacadas o tempo inteiro.” Viés liberal e crise fiscal impedem Bolsonaro de criar rede de proteção social; no lugar, surge a defesa da família Bolsonaro, além de romper com o PSL e anunciar que vai criar um partido que tem ele e os filhos como dirigentes, o Aliança Pelo Brasil (APB), não construiu alianças com o Congresso e minou pontes com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, ambos do DEM.

A imprensa é outra instituição que está sob ataque constante do presidente. Ao defender seu filho mais velho, Flávio, em um caso de desvio de verba pública e lavagem de dinheiro investigado pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ), o presidente gritou para jornalistas que ficassem quietos por três vezes e acusou um dos profissionais de ter uma “cara de homossexual terrível”.

Antes, em outubro, contrariado com uma reportagem que apontava uma conexão entre ele e o caso da vereadora Marielle Franco (Psol), assassinada no Rio, ameaçou caçar a concessão da emissora de televisão. Essa última foi disparada em uma edição extraordinária da “live” presidencial.

A transmissão de 23 minutos foi feita no meio da madrugada, direto de Riad, na Arábia Saudita, onde o presidente tinha compromissos oficiais naquela semana. Para José Álvaro Moisés, o governo tenta, com atitudes e falas como essas, naturalizar medidas autoritárias.

“O governo calcula o risco de não conseguir entregar tudo o que prometeu e de, por isso, virar alvo de manifestações. Diante desta possibilidade, eles estão antecipadamente tentando naturalizar as medidas de exceção: defesa do Ato Institucional nº 5 (AI-5) e da ditadura”, diz o cientista político.

“Não foi por acaso que Eduardo Bolsonaro [deputado federal e filho do presidente] mencionou o AI-5, foi seguido pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional voltou ao tema, e depois o ministro da Economia repetiu”, afirma Moisés. “Há um subtexto, presente no governo, que é a tentativa de fazer passar uma naturalização das medidas de exceção. É típico de um novo populismo de direita, conservador e extremamente autoritário.” Isabela Kalil aponta que a veia autoritária se revela ainda no discurso da “luta contra as elites” do presidente. “Ao supostamente atacar o sistema, ataca-se a ciência, as universidades, as artes, os partidos políticos, a Suprema Corte. Essas instituições passam a ser vistas como elitistas e contrárias aos interesses do povo.”

Ainda que seja tema de estudos acadêmicos, o populismo não consiste em um conceito consensual e sequer nasceu dentro das universidades, como explica o professor de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) Renato Coutinho.

“É uma ferramenta teórica que tenta entender a relação entre Estado e sociedade”, diz o historiador. “A palavra ‘populista’ começa a ser usada por adversários de Getúlio Vargas como uma forma de desqualificá-lo. Os liberais buscavam uma explicação para o fato de os trabalhadores pedirem que Vargas, alguém autoritário, pudesse disputar as eleições. E a resposta a que chegaram era de que os trabalhadores estavam sendo enganados por um líder paternalista.”

Dentro desse entendimento, analisa Coutinho, “a sociedade é débil e adere a determinados projetos políticos porque é manipulável”. Na visão do estudioso, porém, tanto no caso de Vargas como no de Bolsonaro, não há uma manipulação das massas, mas uma identificação de parte importante da população com aquele líder e, assim, elas aderem ao político. Nesse contexto, importa mais discutir quais são os valores que mobilizam os eleitores.

“Há elementos de diálogo, não de manipulação”, afirma Coutinho. “Caso contrário, seriam todos os políticos ou populistas ou autoritários sem apoio popular nenhum.” Renato Coutinho diz que há, de fato, estudos historiográficos sobre a forma de pensar dos trabalhadores brasileiros que mostra uma identificação com o autoritarismo.

“É uma corrente que visa desconstruir a perspectiva da demagogia como fundamental na relação entre Estado e sociedade e analisar a construção das identidades de uma cultura política do trabalhador brasileiro, que reflete uma visão social de mundo de quem adere a determinado projeto, mesmo que esse projeto contenham pontos não democráticos.”