Entendendo a “rachadinha” dos Bolsonaro

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Reprodução

As investigações contra o senador Flávio Bolsonaro, eleito pelo PSL-RJ, ganharam novo capítulo nesta quarta-feira (18) após o Ministério Público do Rio de Janeiro deflagrar operação de busca e apreensão em endereços ligados ao parlamentar e a Fabrício Queiroz, assessor de Flávio durante seus mandatos como deputado estadual (cargo ocupado por ele até 2018).

Os dois são suspeitos de organizar um esquema de “rachadinha” no gabinete do parlamentar na Assembleia Legislativa do RJ. Segundo o site G1 e o jornal O Estado de S. Paulo, a Promotoria identificou que Queiroz recebeu R$ 2 milhões por meio de 483 depósitos de dinheiro em espécie feitos por 13 assessores ligados ao gabinete do filho do presidente da República.

Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro negam todas as acusações.

Embora seja considerada frequente por especialistas e investigadores, a prática só se tornou conhecida de muitos brasileiros neste ano, por causa da repercussão do caso Queiroz.

Ela consiste no repasse, por parte de um servidor público ou prestador de serviços da administração, de parte de sua remuneração a políticos e assessores.

“É uma divisão de proventos, de alguma vantagem financeira, por deliberação de um agente público”, afirma Vera Chemim, constitucionalista e mestre em direito público administrativo pela FGV.

De acordo com Marilda Silveira, professora de direito administrativo da Escola de Direito do Brasil, a “rachadinha” pode ocorrer de maneiras diversas.

“Uma forma bastante comum é se aproveitar de alguém que está desesperado para conseguir um emprego e fazer com que o funcionário divida o dinheiro de sua remuneração”, diz.

A contratação de funcionários fantasmas também pode ser utilizada para partilhar os recursos. Neste caso, o político nomeia para um determinado cargo uma pessoa que não desempenhará, de fato, suas funções. O servidor, então, recebe o salário e repassa parte dele para o deputado, ou para alguém de sua família.

“O combinado pode ser, por exemplo, enviar uma fatia do dinheiro para a irmã do político”, afirma Silveira.

A “rachadinha” funciona ainda como jeito de aumentar o número de servidores de um determinado gabinete. Neste caso, o contratado é obrigado a dividir sua remuneração com alguém que trabalha com ele — uma forma de dividir o salário destinado a um funcionário entre duas pessoas.

A investigação envolvendo o filho do presidente Jair Bolsonaro começou após o então Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, hoje UIF, ou Unidade de Inteligência Financeira), órgão que atua na prevenção e combate à lavagem de dinheiro, identificar diversas transações suspeitas feitas por Queiroz no período em que atuou como assessor de Flávio.

Uma destas operações envolvia um cheque de R$ 24 mil depositado na conta da hoje primeira-dama Michelle Bolsonaro. À época, o presidente afirmou que o cheque teria servido para pagar parte de empréstimo feito por ele a Queiroz.

Os dados financeiros levaram à abertura de uma investigação pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

O relatório do Coaf, divulgado em 2018, mencionava ainda assessores de outros 20 deputados da Assembleia fluminense.

“Essa predominância de transações em dinheiro vivo na conta corrente de Fabrício Queiroz não decorre de acidente, nem de mera coincidência”, afirma relatório da Promotoria que levou à operação de busca e apreensão deflagrada nesta quarta-feira (18), segundo reportagem do jornal O Estado de S.Paulo. “Pelo contrário, essa incomum rotina de depósitos em espécie seguidos de saques também em dinheiro na mesma conta decorre de uma opção deliberada do operador financeiro, com o propósito específico de tentar não deixar rastros no sistema financeiro acerta da origem e do destino dos recursos que transitaram pela conta de sua titularidade, os quais passaram então a circular por fora do sistema financeiro.”

Para os investigadores, parte desses recursos chegava “legalmente” a Flávio Bolsonaro por meio de lavagem de dinheiro a partir de uma loja de chocolate em um shopping do Rio de Janeiro.

Embora a prática seja considerada comum entre parlamentares, deputados estaduais e vereadores, as investigações sobre o tema tendem a se estender por longos períodos, e casos de condenação ainda são raros.

Uma dessas exceções ocorreu na terça-feira (17), quando o Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou três pessoas acusadas da irregularidade.

O vereador Weverton Júlio de Freitas Limões (PMN), de Itabira (MG), e o ex-diretor administrativo da Câmara Municipal da cidade, pastor Ailton Francisco de Moraes, foram sentenciados a seis anos de detenção cada um, em regime semiaberto. A ex-mulher de Moraes, Marilene Cristina Costa Silva Moraes, terá de cumprir um ano e cinco meses, em regime aberto.

De acordo com o Ministério Público Estadual, ao menos dois servidores foram obrigados a repassar parte de seus salários para Ailton e Marlene no período de abril de 2017 a junho de 2019. Eles haviam sido contratados por indicação de Weverton, com salário de R$ 3.800 mensais. Destes, R$ 2.800 eram repassados à dupla.

Mas, se a prática é comum e ocorre nas mais diversas esferas legislativas, por que é de tão difícil investigação e punição?

A primeira barreira envolve a necessidade de quebra do sigilo bancário de servidores e políticos para identificar transações suspeitas — para que isso aconteça, é preciso que haja uma investigação policial em curso.

A polícia, entretanto, não investiga legisladores aleatoriamente. Para que uma apuração tenha início, é preciso haver indícios de crimes ou irregularidades, explica Silveira.

“No caso da ‘rachadinha’, que é conhecida apenas por pessoas envolvidas no esquema, é difícil achar o primeiro fio da meada para puxar”, diz.

Os indícios podem surgir quando alguém rompe com o esquema ou se sente injustiçado e decide fazer uma denúncia anônima — ou negociar com a Justiça uma delação premiada.

De acordo com a professora, a polícia também pode acabar encontrando indícios desses desvios de forma fortuita, como no caso de Queiroz.

Em meio aos levantamentos do Coaf para investigar o ex-governador do Rio Sérgio Cabral, foram identificadas movimentações que não tinham relação com o esquema, mas que indicavam possível prática da “rachadinha”.

“É difícil de investigar porque você só consegue detectar esse tipo de caso ou quando tem uma denúncia por parte do assessor ou quando você tem, por meio do Coaf, a identificação de movimentações suspeitas”, afirma Eduardo Boccuzzi, sócio do Boccuzzi Advogados Associados.

“Se o Coaf não trouxer isso pro Ministério Público ou alguém fizer uma denúncia, ninguém nunca vai saber.”

Chemim lembra ainda que o ato costuma levar à formação de uma organização criminosa. “Quando temos uma organização, ou seja, mais de quatro agentes envolvidos, a investigação se torna extremamente complexa. Trata-se de uma verdadeira teia de aranha”, diz.

O enquadramento da prática de “rachadinha” na lei não é consenso entre juristas. No caso de Itabira, por exemplo, a juíza da 1ª Vara Criminal e da Infância e da Juventude de Itabira, Dayane Rey da Silva, condenou o vereador pelo crime de concussão (obtenção de vantagem indevida em razão da função), previsto pelo Código Penal.

Mas nem todos concordam que o repasse de parte do salário de funcionários a legisladores seja crime. Para parte dos especialistas, ele pode ser considerado apenas um caso de improbidade administrativa — conduta inadequada de agentes públicos que causem danos à administração. Sem lei que estabeleça sua natureza penal, a improbidade não pode gerar sentença de prisão.

As punições a ela incluem o ressarcimento do dano, multas, perda da função pública e suspensão dos direitos políticos. “A rachadinha é com certeza um ato de improbidade”, afirma Marilda Silveira. “Crime depende, porque tem tipos fechados.”

Para ser considerada crime, porém, deve ser enquadrada em algum artigo do Código Penal, como peculato (desvios), concussão, corrupção passiva e até organização criminosa.

Na avaliação de Eduardo Boccuzzi, a prática é, sim, criminosa. “[A ‘rachadinha’] É também ato de improbidade administrativa, mas, na minha opinião, é crime.”

Chemim concorda. “Eu tendo a reconhecer que este ato corresponde a um crime, de corrupção, a partir do momento em que o agente, utilizando-se de sua função pública, acaba por obter uma vantagem econômica indevida.”

BBC