ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

Milícias avançam e dominam regiões do Rio

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Tudo começou com as taxas de segurança. Depois, vieram os sinais piratas de TV por assinatura, o transporte ilegal de passageiros em vans e o monopólio no comércio de botijões de gás. Agora, as milícias partem para uma nova fonte de lucro: os “gatos” de luz. Em Belford Roxo, por exemplo, a Light descobriu que paramilitares instalaram uma rede de energia em um condomínio construído de forma irregular, cujos imóveis foram colocados à venda por R$ 120 mil. Tamanho desafio às leis é apenas um dos casos que demonstram como, no crime organizado do Estado do Rio, a busca por mais dinheiro nunca para.

Denúncias de empresas e moradores, também relatadas pelo Ministério Público (MP-RJ), apontam que milicianos vêm praticando furtos de energia sobretudo na Baixada Fluminense e na Zona Oeste. A “taxa de consumo” é incluída no aluguel de seus empreendimentos imobiliários ou mesmo imposta a toda uma região. A Light, que distribui eletricidade na capital, na Baixada e no Vale do Paraíba, calcula que deixa de arrecadar R$ 800 milhões por ano em áreas nas quais a violência, seja da milícia ou do tráfico, a impede de entrar. Nessas regiões, 73% da energia distribuída é furtada, contra um índice de aproximadamente 10% nas demais áreas (na média geral, o desvio chega a 17%).

Nas áreas dominadas por traficantes, diz Dalmer de Souza, diretor comercial da empresa, eventualmente é possível obter “autorização” para realizar determinados serviços, inclusive cortar “gatos”, dependendo da comunidade. Com os milicianos, frisa ele, não há conversa:

— Com milicianos não se consegue acordo. Aquilo ali ( os furtos de energia ) é lucro certo para eles. Nessas áreas, só se vende uma marca de cerveja ou de gás. É tudo loteado, e o criminoso recebe uma mensalidade por isso. Em comunidades em que a energia não é o negócio dos milicianos, até conseguimos ir. Em outras, não. Em Curicica, por exemplo, nós não entramos ou, quando vamos, eles marcam ( com pintura nos postes ) onde não podemos mexer.

Dalmer lembra que na Favela Eternit, em Guadalupe, sob a tutela de uma milícia, o presidente de uma associação de moradores chegou a ser preso, acusado de receber R$ 30 mensais por cada “gato” de energia. No condomínio irregular de Belford Roxo, ele relata que paramilitares construíram dezenas de casas, e as ligações clandestinas de luz foram feitas com cabos roubados da própria Light.

— Não importa o consumo, o valor da conta de luz é fixo, R$ 50 — afirmou na semana passada um homem que atendeu no número de telefone anunciado numa placa de apartamento para alugar.

Achaque toda sexta-feira

Situações parecidas foram relatadas à Justiça pelo MP-RJ. Numa denúncia do começo do ano, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) descreveu a atuação dos milicianos nas comunidades de Rio das Pedras, Muzema (onde dois prédios desabaram em abril) e arredores. Promotores indicaram que um grupo acusado de agiotagem e homicídios recorria a ligações clandestinas de água e energia para abastecer seus imóveis construídos ilegalmente. Numa conversa telefônica interceptada com autorização da Justiça, um miliciano informava que o aluguel de um apartamento custava R$ 1.300. No pacote, explicava ele, “não paga luz, não paga condomínio, não paga água, não paga nada”.

Investigações mostraram ainda que, onde havia relógios de medição, criminosos os registravam com nomes de “laranjas”. Além disso, o relatório do Gaeco cita uma denúncia segundo a qual “os envolvidos recolhem taxas referentes a gatonet (R$ 50), internet (R$ 60), gás (R$ 90) e ‘gato’ de luz (R$ 100)”, sempre às sextas-feiras.

O MP-RJ também identificou a ação de uma milícia em cinco condomínios do Minha Casa Minha Vida na região de Cabuçu, em Nova Iguaçu, onde o furto de energia era um dos crimes cometidos. Em conjuntos às margens da Estrada de Madureira, O GLOBO constatou, na última quarta-feira, que pequenos estabelecimentos comerciais tinham ligações clandestinas.

Em Duque de Caxias, no ano passado, uma mulher sofreu afundamento de crânio ao ser agredida por milicianos, depois de tentar regularizar sua conta de luz. Ainda na Baixada, um relatório de setembro da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) apontou que paramilitares embargaram a continuidade da construção de parte de uma linha de transmissão entre Taubaté (SP) e Nova Iguaçu.

A violência das milícias e do tráfico também afeta a área de concessão da Enel, distribuidora de 66 municípios fluminenses. A empresa identifica 270 áreas de risco, onde 63% da energia é furtada. São Gonçalo, Niterói, Magé, Itaboraí, Macaé e Angra dos Reis estão entre as cidades mais afetadas.

As perdas são de todos, e os consumidores pagam a conta. Segunda a Light, não fossem os furtos de energia, a tarifa poderia ser reduzida em 15%. Os prejuízos também são para o meio ambiente, uma vez que os “gatos” estimulam um consumo pouco consciente, ressalta Ângela Magalhães, superintendente de regulação da empresa. Ela conta que, com o recrudescimento da criminalidade, a situação se agravou:

— Hoje, há 700 mil pessoas nas áreas de risco que mapeamos. Mas também há cerca de 200 mil em regiões em acompanhamento, que podem passar a ser classificadas como de risco se as coisas piorarem.

Ângela ressalta que os perigos não se restringem a favelas. Ela destaca que, na Baixada, 36% do território são considerados de risco pela Light, mas só 3% foram identificados como aglomerados subnormais (favelas) pelo IBGE. Juntas, Zona Oeste, Itaguaí e Seropédica têm 31% de áreas inacessíveis à empresa, sendo que 9% são comunidades.

— São as áreas do estado em que a diferença entre esses percentuais é maior. Também são as regiões com maior atuação das milícias — diz Ângela.

A Polícia Civil afirma que a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas e de Inquéritos Policiais (Draco-IE) investiga, sob sigilo, as milícias nessas regiões.

OGLOBO