A importância de “Marighella” para o Brasil de hoje

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Foto: Reprodução

A atriz Maria Marighella, 44 anos, manifesta preocupação quando fala sobre a situação do cinema brasileiro. Ela destaca que ações de intervenção do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na Ancine (Agência Nacional do Cinema) trarão danos inimagináveis para o pensamento e liberdade da sociedade brasileira.

Seja com qualquer filme, ainda que um dos principais exemplos seja com o longa que conta a trajetória do avô de Maria, o militante, político e escritor Carlos Marighella, considerado inimigo público número 1 da ditadura militar.

A crítica pela série de impeditivos impostos ao lançamento está além do laço afetivo. Para ela, quem perde é o Brasil em não ter acesso à produção, inicialmente programada para estrear no primeiro semestre do ano passado, adiado para 20 de novembro de 2019 e, agora, com estreia prevista para 13 de junho de 2020.

“Não me revolta o fato de ser parente de Marighella. Falo que quem precisa desse filme é o Brasil. O que precisamos é reivindicar agora é uma política pública para o cinema nacional que seja capaz de contar a sua história, gerar pensamento e posicionar o Brasil como um lugar que produz cinema, arte, pensamento, afinal de contas”, explica.

Maria participou de debate sobre a vida e legado deixado pelo militante comunista, morto em uma emboscada feita por agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), da ditadura militar, e coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury no dia 4 de novembro de 1969.

Marighella estava desarmado e foi fuzilado dentro de um fusca na Alameda Casa Branca, na região da Avenida Paulista, centro de São Paulo. O encontro integrou o Festival Verão Sem Censura, organizado pela Prefeitura de São Paulo.

Ponte – O quanto é importante esse tipo de encontro que destaca a memória de Carlos Marighella?

Maria Marighella – É incrível reunir produções artísticas, culturais de todo o Brasil para lembrar um pouco desse manto de censura, interdição, desse assédio, dessa iminência de o tempo inteiro estar interditado. É um evento impressionante. Sexta teremos reedição do roda viva, espetáculos de juventude, espetáculos que foram exibidos nos anos 1960… É muito importante reunir nesse evento essas pessoas, quem está produzindo e quem está tencionando o espaço público para apresentar as suas obras e pensamento.

Ponte – E quanto à história do seu avô?

Maria Marighella – Foi incrível que a atividade tenha não só estado circunscrita à exibição do filme, que agora é a última censura de Marighella, mas tenha trazido o Mário [Magalhães, jornalista autor da biografia do militante], que dá esse panorama e contextualiza. Falei no início da conversa: a censura é essa dimensão de interdição do pensamento, do diálogo e do debate público. É de onde podem vir saídas de futuro, onde podemos imaginas simbolicamente, politicamente. É muito violento para a sociedade brasileira perder essa dimensão de liberdade com um processo de democratização tão recente, curto, ainda tão jovem e ainda insuficiente. Esses ataques são inadmissíveis e acho impressionante que a curadoria do evento tenha trazido Marighella e essa história para ilustrar um pouco esse século 20, o que foi ele, e os perigos que sofremos agora. É um dever da família, da memória, deve ser um dever do Brasil resgatar e restituir a memória de Marighella, mas o Brasil precisa ainda muito de Marighella, o que foi a sua luta. Como ele se comportou quando foi deputado, dirigente de partido… Isso ainda é muito inspirador. Não só nos conta o que ele foi, mas nos dá pistas do que ainda precisamos avançar.

Ponte – Você tem uma explicação do por que Marighella gera uma automática censura vinda do governo de Jair Bolsonaro?

Maria Marighella – Acho que porque Marighella representa justamente esse campo de tensão com que eles querem interditar. É um campo que quer que [o país] seja mais justo, mais igual, com liberdade, igualdade. Ou seja, é um projeto de país que apequena o país, projeto de venda das riquezas. Isso é totalmente contra a Marighella, um homem que pensou um Brasil soberano. Qual era a luta de Marighella? A luta de soberania. Quando você tem um governo que ataca o pensamento, a soberania, o campo social, está indo absolutizante de encontro ao que Marighella não só lutou [para existir] e dedicou toda a sua vida. Não é de se espantar, mas não deixa de ser espantoso, violento e precisamos falar disso pelo Brasil. Essa guinada não por Marighella. A contribuição que Marighella fez está dada.

Precisamos fazer isso pelo Brasil, para quem ainda não deu essa volta, ainda não tem consciência. E não falo para o sujeito, falo para a nação que precisa se encontrar com a sua história. Parte de sua história é esses homens e mulheres que lutaram e em diversas lutas. Essa semana, por exemplo, a data que comemorou a revolta dos Males, na Bahia. O Brasil precisa saber o que foi a revolta do Malês, dos Búzios. O país não saber o que foram essas revoltas e essas insurgências negras nos traz consequências enormes de violação de direito, de permanência de violência. Estarmos juntos contando essa história é reivindicar um Brasil mais justo, soberano e igual.

Ponte – Você é atriz no filme de Marighella. Depois de tanto tempo, o filme tem uma data para ser lançado. Qual é a sua atuação? A expectativa é maior pelo papel em si, por ver a história do seu avô sendo contada, ou para romper com a censura?

Maria Marighella – É uma pequena participação. Eu interpreto a minha avó, mãe do meu pai. O personagem do garoto, que é o meu pai, um personagem lindo, tive essa participação que chamo como afetiva. Eu estou vendo isso [censura] como alguém da cultura. Acho inadmissível o que está acontecendo no cinema brasileiro. Não me revolta o fato de ser parente de Marighella. Falo que quem precisa desse filme é o Brasil. Me revolta como gestora de cultura, como atriz, revolta esse assédio às artes, à cultura, com expediente de administração.

Sou gestora, participo da gestão pública, entendo e o que precisamos é reivindicar agora é uma política pública para o cinema nacional que seja capaz de contar a sua história, gerar pensamento e posicionar o Brasil como um lugar que produz cinema, arte, pensamento, afinal de contas. O cinema no Brasil é absolutamente relevante, seja pena dimensão simbólica, econômica, cidadã, de acesso. A população brasileira tem o direito de ver suas histórias, seu filme, não pode ficar colonizado eternamente por um cinema estrangeiro infinitamente. É preciso ter a experimentação, passar por anos de experimentação de sua filmografia. É revoltante desse ponto de vista.

Ponte – E temos vários exemplos bons recentes, como recentemente Bacurau.

Maria Marighella – Exatamente! Acho que os efeitos que vamos colher daqui a algum tempo, esses que nos preocupam em maior grau. Porque o que a gente está vendo hoje é um hiato, uma paralisação da produção que está acontecendo. Se tem ataque às produções que foram realizadas em um tempo, por outro lado tem uma série de filmes e produções que estão paradas esperando a organização, administração…

Ponte – Dá para imaginar como será o impacto no pensamento, nas ideias provocado por esta censura?

Maria Marighella – Já teve. Houve, primeiro, o presidente da república indo a público falar que um filme não passaria em determinado edital, filme com temática LGBT+. Só que ali, no edital, era para séries LGBT+. Ou seja, não faz o menor sentido. Depois esse mecanismo voltou a circular, mas o filme não passou. É uma série de idas e vindas e ataques e precisamos contar para a sociedade que isso é absolutamente terrível para a construção da sociedade livre, justa. Estar aqui, hoje, não é só falar de Marighella, é reivindicar um espaço de liberdade que é pilar de qualquer democracia.

Ponte – Consegue imaginar como seria uma atuação de Marighella nos dias atuais?

Maria Marighella – Acho que é especulativo, mas é claro. Marighella estaria inventando suas saídas, mas vou preferir não falar. É óbvio. A leitura de Marighella nos dá pistas imensas de onde ele estaria, fazendo o que e com quem [risos].

Ponte