Bolsonarismo, militarização do Estado e ameaça à democracia

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Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro anunciou sua resposta ao problema dos atrasos na concessão de benefícios do INSS. Ele propôs a contratação temporária de militares da reserva para o atendimento nas agências. A solução, que a primeira vista pode parecer simples improviso emergencial, esconde na verdade a concepção de reforma bolsonarista do Estado. Trata-se de uma solução de compromisso entre as exigências do mercado financeiro e as demandas da base eleitoral do ex-capitão. A ideia é promover, de um lado, o corte de gastos públicos e a redução dos serviços estatais e, de outro, a absorção do vasto contingente de militares da reserva sem concurso na administração pública. É preciso analisar como essas duas lógicas tão distintas e aparentemente contraditórias estão em vias de se compor no atual governo, reforçando-se mutuamente e ameaçando a democracia.

A agenda de austeridade econômica, é preciso lembrar, teve início ainda no governo Dilma, com a convocação do então ministro Joaquim Levy, e foi posteriormente aprofundada no governo Temer, com Henrique Meirelles. Mas com Paulo Guedes ela foi radicalizada e virou projeto de país. A proposta, mais do que apenas sanar o déficit das contas públicas, é promover uma radical transformação do Estado brasileiro. Como o próprio ministro da economia já deixou claro, trata-se de fazer o Brasil migrar do modelo da socialdemocracia, consagrado pela Constituição de 1988 e incipientemente construído pelos governos da Nova República, para o modelo por ele denominado de “liberal-democracia”. Nessa passagem, Guedes propõe uma redução do Estado, transferindo ainda mais serviços para a iniciativa privada, com consequente diminuição drástica do funcionalismo público. Por isso, o ministro suspendeu grande parte dos concursos públicos, impedindo a reposição do quadro de pessoal em um contexto de reforma da previdência que fez com que muitos funcionários que já tinham condições antecipassem suas aposentadorias. Os efeitos da redução de pessoal agravados pelas restrições da PEC dos gastos se fizeram sentir imediatamente. O tempo de espera cada vez mais longo na concessão de benefícios já é consequência dessas medidas sobre o INSS, para ficar no exemplo em questão.

O caos gerado pelos cortes ameaça tornar setores da administração pública completamente disfuncionais, surgindo ainda a possibilidade de explodirem revoltas populares em função da insatisfação com os serviços prestados. Essa situação cria uma dupla oportunidade para o governo. Primeira, a de reafirmar a ineficiência estatal e atribuí-la não ao estrangulamento orçamentário e do funcionalismo, mas à característica monopolista dos serviços públicos, abrindo caminho para privatizações. A segunda, mais imediata, a de contratação emergencial de funcionários temporários que possam normalizar minimamente a administração e a prestação de serviços.

É nesse segundo flanco que o governo Bolsonaro age de modo a atender à sua base histórica. Ao priorizar a contratação de militares da reserva e, por vezes, no caso de falta de candidatos, de militares da ativa, incluindo as forças policiais estaduais (como no caso das escolas cívico-militares), o governo abre a possibilidade de ganho de 30% a mais sobre os valores das pensões ou dos salários e de uma série de benefícios como adicional de férias, diárias, auxílio-transporte e auxílio-alimentação. A medida é flagrantemente inconstitucional, como já se manifestou o Ministério Público ao Tribunal de Contas da União, já que cria uma reserva de mercado injustificável para os militares em detrimento dos civis, violando as regras de contratação via concurso público para carreiras específicas. Contudo, isso não impediu o governo de insistir na medida. Ela foi inicialmente incluída (o típico jabuti) na reforma da previdência, tendo sido derrubada em seu trâmite no Congresso. Depois foi incluída na reforma dos militares enviada pelo Ministério da Defesa, tendo então sido aprovada no final do ano passado. Temendo ser uma base legal fraca, mais recentemente, no dia 23 de janeiro, o então presidente em exercício, Hamilton Mourão, assinou decreto regulamentando a contratação de militares inativos para atividades de natureza civil no funcionalismo público. O prazo de contratação é de 4 anos para o órgão empregador e de 8 anos para o militar inativo. A contratação excede e muito o auxílio prestado ao INSS, podendo se estender a várias outras instituições públicas.

Se aprovada, as consequências dessa medida são amplas e graves. Em primeiro lugar, Bolsonaro retoma o apoio de sua base eleitoral situada nos suboficiais das forças armadas e das polícias, a qual havia sido abalada pela reforma da previdência dos militares, que não estendeu aos praças os meus benefícios concedidos às altas patentes. É preciso lembrar também que 88% dos militares passam para a reserva muito jovens, com idade entre 45 e 54 anos, tendo ainda pela frente muitos anos de vida útil e aspirações de uma vida financeira melhor. A atuação temporária no serviço público compensaria assim as perdas econômicas sofridas na reforma da previdência e daria ainda acesso a uma ocupação com algum status.

Em segundo lugar, promove-se uma ampla militarização da administração pública. No último levantamento realizado pela Folha de São Paulo (14/10/2019), já eram cerca de 2.500 militares em cargos de chefia e assessoramento de baixo escalão (ainda antes da implementação das escolas cívico-militares) e, segundo o Estadão (02/03/2019), cerca de 130 militares nos três primeiros escalões, sendo oito ministros, o grupo melhor representado no governo. É preciso reconhecer que o governo tem o direito de preencher os cargos comissionados e de confiança segundo suas preferências e que, no caso do governo Bolsonaro, a falta de quadros técnicos conservadores qualificados e de um partido estruturado facilitou o caminho para a entrada dos militares. Mas o que está em causa agora é algo muito mais radical. É a ampla substituição do funcionalismo público civil por militares inativos. Quanto mais Paulo Guedes desmonta o Estado, corta gastos e impede concursos públicos, mais a administração pública é militarizada. E a militarização da administração permite ao ministério da economia reduzir os quadros estáveis (e por isso independentes) do funcionalismo, criando a flexibilidade de dispensar os temporários quando julgar necessário (segundo motivos econômicos ou políticos).

Em terceiro lugar, e de maneira mais preocupante, ocorreria a vinculação política da administração pública militarizada e sem estabilidade ao governo Bolsonaro. Com isso, não apenas a burocracia estatal perderia sua neutralidade, mas, ainda mais grave, a cooptação política dos militares poderia criar as condições para o aprofundamento da crise da democracia. O viés político-militar-administrativo abre a possibilidade de veto a candidatos e partidos eleitos, de pressão sobre outros poderes e instituições e, no limite, até mesmo de um golpe militar clássico em nome da preservação dos próprios postos. Os dois primeiros casos não seriam exatamente uma novidade no caso brasileiro recente. Basta lembrarmos da pressão exercida por militares da ativa sobre o STF quando do julgamento da validação da candidatura de Lula, então líder nas pesquisas, para as eleições presidenciais de 2018. Com a militarização politizada da administração pública, o fantasma tão temido pela direita da “venezuelização do país” nunca esteve tão próximo, mas com sinal ideológico trocado.

Diante das consequências desastrosas para a democracia e o Estado brasileiro, é imperioso e urgente que o decreto promulgado pelo então presidente em exercício Hamilton Mourão seja considerado inconstitucional e que o Congresso, o STF e o TCU suspendam qualquer medida do governo que vincule as reformas neoliberais à militarização da administração pública. Antes que seja tarde.

Estadão.