Europa combaterá manipulação de sua História

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Foto: Maciek Nabrdalik

Na Europa Central e do Leste, o discurso histórico atual tende a uma glorificação neonacionalista. Na parte ocidental, existe a tentação de sucumbir à amnésia nas narrativas de fatos do passado. Sustentado nestas premissas e na preocupação com a crescente propagação de discursos xenófobos, racistas e antissemitas, o Conselho da Europa, formado por 47 países, criou o Observatório do Ensino de História da Europa. A ideia é ter um instrumento capaz de realizar uma radiografia do ensino de História nas diferentes nações, para lutar contra a manipulação e a desinformação e favorecer um relato histórico europeu minimamente comum.

A iniciativa partiu da França em sua presidência do Conselho, encerrada em novembro, e foi aprovada em votação por ministros da Educação do continente. Segundo o ex-deputado europeu Alain Lamassoure, designado para capitanear o projeto, 23 países aceitaram ser membros fundadores do Observatório, e outros seis indicaram interesse em aderir. Hungria e Polônia, governadas pelos ultraconservadores nacionalistas Viktor Orbán e Jaroslaw Kaczynski, respectivamente, se recusaram a participar. Suécia e Itália manifestaram reticências.

— Mas Rússia, Geórgia, Turquia, Armênia e Grécia estão dentro — diz Lamassoure. — E quase todos os países da ex-Iugoslávia, que, infelizmente, continuaram a ter relações muito difíceis entre si, e ensinam uma História muito nacionalista, entenderam que têm interesse em fazer evoluir o sistema e a necessidade de um encorajamento internacional para isso.

Criado em 1949, o Conselho da Europa visa a promover a garantia dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito em seus países-membros. O Observatório deverá ser instituído no segundo semestre, após a nomeação de um comitê científico e a escolha de uma cidade-sede. O objetivo é, a cada dois anos, divulgar um detalhado relatório sobre o estado do ensino de História em cada país, acompanhado de debates com acadêmicos, políticos, ONGs, estudantes e pais de alunos.

Os países que não aderiram não ficarão excluídos da análise, mas serão privados de participar do comitê. Espera-se que, a exemplo da avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), feita pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o estudo do Observatório também possa exercer alguma pressão externa para que países corrijam eventuais desvios no ensino da História.

— Há 15 anos, vimos em todos os países europeus, sem exceção, ressurgir um discurso de ódio, de partidos políticos extremistas, xenófobos, racistas — alerta Lamassoure. — É muito inquietante nos darmos conta de que, se não transmitirmos às próximas gerações os ensinamentos de nossos erros do passado, arriscamos ver o reaparecimento de movimentos nacionalistas que conduziram às guerras. A forma de apresentar as narrativas históricas tende a incitar à reconciliação ou, ao contrário, a reforçar ressentimentos.

Lamassoure acusa a formação, hoje, de patriotas em vez de cidadãos europeus, e lamenta tentativas oficiais de “reescrever” a História. Cita como exemplos manuais escolares húngaros que destacam a “Grande Hungria” de 1867 a 1918, o que serviria ao ultranacionalismo do partido Jobbik e à política de Orbán; e também a lei votada pela Polônia, em 2018, que proíbe a atribuição de crimes nazistas ao Estado polonês. Em sua mira, também está o ensino “bastante nacionalista” na Catalunha, em Flandres, na Escócia ou na Irlanda do Norte.

— Percebi que em um certo número de países havia uma visão da História completamente falsa. Nas jovens gerações, há pequenos nacionalistas ou amnésicos, que são bastante vulneráveis. Quando se faz sondagens, hoje, sobre quem é o povo mais próximo da França, dois em cada três franceses respondem que é o alemão. É quase um milagre. Isso é graças, também, a essa contribuição política original que é a União Europeia, que, embora avance lentamente, combina a união com a independência e autonomia de cada país.

O historiador Benoit Falaize, colaborador do projeto, acredita que o Observatório é uma oportunidade para que se faça uma cartografia europeia de todos os temas sensíveis do ensino de História em cada país:

— Na Estônia, a memória do nazismo é vista como parte do patrimônio nacional, porque os nazistas se opuseram ao comunismo. Na Ucrânia, há grandes personagens que colaboravam com o regime nazista que ainda têm estátua em Kiev e são apresentados como heróis nacionais nos manuais escolares.

As interpretações da Segunda Guerra e as memórias sobre a violência dos totalitarismos nazista e soviético são, aponta, motivo de constante divergências nas classes de História.

— O que ensinar aos jovens húngaros de hoje? Que os soviéticos invadiram o país e foi uma catástrofe nacional? Ou que ocorreram duas tragédias nacionais na Segunda Guerra: a tomada de poder pela extrema direita em aliança com os nazistas, sucedida pela invasão soviética? No segundo caso, é possível definir um ideal democrático, ou seja, [dizer] “não” ao poder autoritário e ditatorial. No primeiro, pode dar algo como “afinal, os nazistas não era tão ruins, e não temos nada a ver com os judeus”, o que leva a uma consciência cidadã bastante singular. Os historiadores da Hungria estão, hoje, em franca oposição ao governo Orbán sobre a maneira como é ensinada a Segunda Guerra.

Além dos países de “propaganda nacionalista”, os idealizadores do Observatório atentam também para aqueles que concedem pouca importância ao ensino da História ou que o fazem de forma insatisfatória.

— Na Holanda e nos países escandinavos, o programa nacional de educação é chamado de “cânone”, constituído de uns 50 temas, e cada escola escolhe uma dezena deles — diz Lamassoure. —São assuntos sem relação cronológica, como a Renascença na Itália, a Descoberta da América, os progressos científicos do século XX, a situação dos camponeses na Idade Média ou dos operários na Revolução Industrial. Há conhecimentos sobre o passado, mas que não permitem entender o que ocorreu nas gerações de seus pais e avós, em seu país e no mundo.

Ele conta também com a divulgação de trabalhos de historiadores externos aos âmbitos nacionais, como meio de influência para que as populações afrontem seu passado e seu presente. Foi o caso do historiador americano Robert Paxton, que revelou com sua obra “A França de Vichy”, em 1972, o papel do governo francês na deportação de judeus durante a ocupação nazista.

— Outro exemplo é o do historiador polonês Jan Thomasz Gross, que estudou a cumplicidade de parte do povo polonês com os nazistas, contra os judeus, um tema que permanece extremamente sensível na Polônia. Outro historiador, o americano Timothy Snyder, faz um trabalho sobre o Holocausto na Europa Central e do Leste. Os historiadores dos países estudados não podem ignorar estes estudos.

Falaize defende o Observatório como um “excelente instrumento de reflexão” para historiadores e professores de História em “um momento em que se impõe a questão da democracia na Europa”. E alerta para um novo “fenômeno político”:

— Hoje, pode-se continuar a fazer funcionar a democracia com pessoas no poder que dizem qualquer absurdo, o que é assombroso. Antes, só os ditadores se assumiam como tal e suprimiam a democracia. Hoje, há manipulações, fake news, violência verbal… Não se formam cidadãos críticos e vigilantes aos usos da democracia e às manobras políticas de doutrinação.

O Globo