Genocídio da população negra também inclui PMs

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Foto: Eduardo Saraiva/A2IMG

Eram 9h45 do dia 14 de dezembro, um sábado de sol e calor em Piracicaba, interior de São Paulo. O soldado da Polícia Militar Vinicius da Silva de Melo, 28, fazia ronda na companhia de um cabo no bairro Alvorada 1 quando os dois suspeitaram do motorista de um Honda Fit que cruzou com a viatura. Há sete anos na corporação —nos quais acumulou duas condecorações por mérito—, Silva deu sinal para que o suspeito encostasse. No volante do Honda estava Sérgio Gomes Samad, que acelerou em tentativa de fuga por alguns quarteirões até colidir com dois outros veículos. Ele então desembarcou e, com um fuzil AK-47 calibre 7.62 nas mãos, uma arma de guerra de origem soviética, disparou contra os PMs. Silva foi baleado na cabeça e morreu na hora. Deixou dois filhos, de quatro e seis anos.

O soldado faz parte de uma estatística complexa e triste: o alto e desproporcional número de policiais negros mortos no país. De acordo com dados publicados no 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 51,7% dos 726 policiais mortos entre 2017 e 2018 eram negros, ante 48% de brancos e 0,3% de amarelos. Segundo o Anuário, negros são apenas 37% do efetivo das polícias. Mas a questão não é tão simples: as duas estatísticas são fruto de autodeclaração de cor, método que costuma “embranquecer” o resultado final. Ao que tudo indica são subestimadas. “Existem mais negros nas forças públicas, e eles são muito mais do que 51% do total de vítimas fatais”, diz Alexandre Felix Campos, Investigador de polícia em São Paulo há 20 anos e membro-fundador do Movimento dos Policiais Antifascismo.

Este grande número de policiais negros mortos no país é um dado ignorado por boa parte da população, e frequentemente negligenciado pelo campo progressista. “Quando falamos em genocídio da juventude negra, que é um fato, precisamos incluir aí a morte dos jovens policiais negros. Eles são descartáveis na tropa”, diz Campos. Segundo ele, a esquerda erra na forma como se relaciona com estes soldados e cabos, a base das corporações. “Colocam o policial como vilão, como cão de guarda da burguesia. Ele é isso? De certa forma, sim. Mas o que está sendo construído quando se grita ‘não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar’? Gritar isso faz com que o soldado ache que você quer o fim do emprego dele, do sustento dele. É isso que queremos?”, explica. Para o investigador, “esse jargão silencia o pobre, preto e periférico que resolveu ser policial”. “O que eu quero uma policia desmilitarizada”.

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O tratamento dispensado pela esquerda para com os policiais também é criticado pelos integrantes da bancada da bala, um dos grupos conservadores mais atuantes no Congresso. “A esquerda desconsidera as mortes dos policiais, não interessa para eles essa questão”, afirma o deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP), que ficou famoso ao vandalizar uma gravura exposta na Câmara que exibia um jovem negro morto e um policial se afastando do corpo com a arma fumegante. Mas o parlamentar não dá maior importância ao número desproporcional de policiais negros vitimados: “Morrem mais policiais negros porque eles são a maioria. A ordem da esquerda é segmentar a sociedade o mais que ela puder”.

Mas o que explica esta disparidade no número de policiais negros mortos? Parte da resposta está no racismo estrutural brasileiro e na desigualdade socioeconômica do país, de acordo com especialistas. “Pela minha experiência pude perceber que o público afrodescendente na segurança pública é operacional. Não está enraizado em quantidade na sala de comando, entre oficiais”, explica Leandro Prior, Coordenador Nacional da pasta de Segurança Pública da ONG Aliança Nacional LGBTI. Ele também é soldado da Policia Militar de São Paulo, mas concedeu entrevista na condição de coordenador da Aliança. Ele se considera “pardo”.

Ou seja, os policiais negros são, em sua maioria, praças: soldados e cabos, as patentes mais baixas na hierarquia da tropa, comumente destacados para operações de ronda e patrulha ostensiva pela cidade. “O concurso público para praças e oficiais, que é o método de ingresso na corporação, é muito concorrido. Mas obviamente a prova para a segunda categoria é muito mais exigente e difícil”, diz Prior. “No final das contas, o que dificulta o acesso do negro ao oficialato é a qualidade inicial do ensino público. Boa parte dos policiais negros estudou no sistema público, não fez cursinho preparatório para concurso”. Mesmo na polícia a desigualdade do acesso à educação de qualidade se faz sentir.

A dificuldade de promoção e acesso do negro às patentes mais altas da corporação faz com que ele tenha que trabalhar na linha de frente da segurança pública, o que o deixa mais vulnerável ao homicídio por dois fatores: “Ele fica mais sujeito a uma ocorrência violenta, por exemplo”, diz Prior. Além disso, boa parte deles reside em regiões periféricas com índices maiores de crimes. “Se você mora em uma comunidade ou favela a chance de ter troca de tiro é muito maior do que morando nos Jardins”.

As diferenças entre oficiais e praças são, além de operacionais, financeiras. Enquanto um 2º tenente (uma das patentes mais baixas do oficialato) da Polícia Militar de São Paulo tem remuneração inicial de 6.705 reais, um soldado recebe 3.143 reais. Mas a questão também vai além do dinheiro. “O racismo estrutural nas corporações de polícia ocorre de diversas formas, primeiramente subestimando a capacidade intelectual, como se o negro não fosse capaz de ir além se não cumprir ordens. Como se o papel dele de fato fosse ser peão”, afirma Prior. Posteriormente, a discriminação assume contornos mais agressivos: “Há uma forma mais direta como a já conhecida perseguição administrativa, dando escalas ruins, negando solicitações, colocando o policial em um posto ruim ou sem estrutura para coisas simples como um banheiro, água potável ou facilidade para obter refeição”.

“O racismo estrutural nas corporações de polícia ocorre de diversas formas, primeiramente subestimando a capacidade intelectual
O racismo dentro da corporação também se faz sentir cedo. “Logo nos primeiros meses de policia, no curso de formação, eu percebia que acabava sendo mais escalado do que outras pessoas da minha turma”, relembra o soldado da Polícia Militar do Paraná Ricardo Silva, que teve o nome alterado na reportagem para não sofrer represálias. Ele tem 30 anos de idade, 10 de tropa. “E rolam as piadinhas né? Chamam de negão, etc. É feito em tom de brincadeira, mas eu levo muito a sério”, diz. Dos seis chefes diretos de Silva, apenas um é negro. “Eu acho fundamental termos mais oficiais negros. O policial negro em tese tem visão diferenciada, e até uma maior empatia com a população, uma vez que a maior parte das nossas abordagens é com pessoas negras, e compartilhamos a mesma origem social”.

Este enraizamento do preconceito na corporação é tão naturalizado que alguns colegas de Silva não se importavam de destilar o racismo na sua frente. “Trabalhei com um policial branco que era super racista, ele dizia abertamente que atendia de forma distinta negros e brancos, abordava os dois de forma diferente: ‘com negros sou mais duro, porque conheço a raça”, afirma. O soldado chegou a sondar alguns de seus chefes sobre como proceder diante de um caso tão flagrante como este, mas foi desestimulado a fazer qualquer reclamação formal: “Os mecanismo de controle são muito frágeis, não vale a pena denunciar porque você se expõe e fica sujeito a represálias”.

A reportagem entrou questionou a Polícia Militar do Rio de Janeiro e a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo —Estados que concentram as maiores forças policiais do país— sobre o número de negros mortos em suas fileiras. Ambas se limitaram a informar o total de policiais mortos, independentemente de cor.

A estatística sobre a predominância de policiais negros entre os mortos nas forças públicas dialoga com outra realidade brasileira: jovens negros são as maiores vítimas de ações da PM. Eles são 75,4% do total de fatalidades durante intervenção policial. O que nos leva à conclusão de que, independentemente do lado da pistola em que o negro se encontra, na mira ou atrás dela, ele é a maior vítima. “São esses policiais negros que matam o jovem da periferia que está andando de moto ou vendendo droga. E também são eles que morrem. O inimigo que o Estado construiu para ele combater todos os dias em nome da guerra às drogas é o cara que ele vê no espelho”, diz Campos, do Movimento dos Policiais Antifascismo.

El País