Irã x EUA: diplomata critica alinhamento de Bolsonaro

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Foto: Reprodução

Desde que a notícia da morte do general iraniano Qasem Soleimani num ataque americano no Iraque ganhou as redes, no dia 2 de janeiro, o celular do embaixador aposentado Sergio Tutikian toca sem parar. Interlocutores querem saber sua opinião sobre a escalada do conflito na região. Aos 80 anos, o gaúcho de Porto Alegre acumula uma rara experiência entre diplomatas brasileiros quando o assunto é Oriente Médio.

Filho de sobreviventes do genocídio armênio promovido por tropas otomanas durante e após a I Guerra Mundial, ele chegou a Teerã em 1970 como terceiro-secretário para assumir o primeiro posto da carreira: o de encarregado de negócios do Brasil junto ao governo do xá Reza Pahlevi.

Deixou a capital iraniana em 1973 como segundo-secretário e retornou em 1987 como ministro-conselheiro. O país havia mudado: o xá se fora, os aiatolás estavam no poder desde 1979 e a sociedade iraniana tinha se dilacerado numa guerra contra o Iraque que duraria até o ano seguinte. Tutikian conhecia bem a situação. De 1980 a 1984, servira na embaixada brasileira na capital iraquiana.

Fluente em árabe, persa e turco, o ex-chefe do Departamento de Oriente Médio do Itamaraty conversa com naturalidade com vendedores de tapetes e chefes de Estado do Oriente Médio. Nesta última categoria, não lhe faltaram interlocutores: o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, os ex-presidentes do Irã Mohammad Khatami e Akbar Rafsanjani, o rei Hussein da Jordânia, o líder palestino Iasser Arafat.

Em entrevista ao GLOBO, Tutikian analisou a situação na região e a situação do Brasil após a morte de Soleimani.

Diga algo vital para a evolução da crise no Oriente Médio e que o público brasileiro desconheça.

Esqueça o traçado das fronteiras e olhe para as lealdades religiosas, sectárias, étnicas e culturais. A maioria dos iraquianos se vê em primeiro lugar como xiita, em segundo lugar como árabe e apenas em último lugar, se tanto, como cidadã de um país chamado Iraque. O lugar mais sagrado do Islã xiita, num certo sentido mais até do que Meca, é Kerbala, no Iraque, onde o imã Hussein, neto de Maomé, foi massacrado no século 7.

Quando o aiatolá Khomeini foi exilado pelo xá Reza Pahlevi, no início dos anos 1960, não buscou abrigo em nenhuma região de maioria persa, mas em Kerbala, que era e continua sendo uma cidade esmagadoramente árabe — e, obviamente, xiita. Ignorar esse fato custou muito caro a Saddam Hussein durante a Guerra Irã-Iraque, em 1980. Saddam invadiu o Irã pelo chamado Arabistão iraniano, no sudeste, imaginando que suas tropas seriam recebidas como libertadoras.

A população de origem árabe fugiu em massa para Teerã, e as tropas iraquianas entraram em cidades fantasmas. Na atual crise, iranianos, que são persas, e iraquianos, que são árabes, estarão do mesmo lado, unidos pelo xiismo. Nos dois países há minorias sunitas, sejam árabes ou curdas, mas contam muito pouco neste momento.

Sempre tive certeza de que haveria reação do Irã à morte de Soleimani. E reação forte. O Iraque já está nas mãos do Irã há muito tempo, não é uma coisa de agora. Foi desde o momento em que derrubaram Saddam (Hussein), que não convinha para a Arábia Saudita e para o Irã, mas convinha para nós, ocidentais. O presidente do Iraque (Barham Salih) despacha em Qom (cidade sagrada do Islã xiita, no Irã) uma vez por semana.

O Irã tende a escolher como alvos os aliados dos Estados Unidos: Israel, especialmente na fronteira com Líbano e Síria, e Arábia Saudita, principalmente na região de Dahram, grande produtora de petróleo e majoritariamente xiita. Outra arma que o Irã tem é o controle do Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. Esse controle é compartilhado com o sultanato de Omã, que historicamente sempre foi aliado do Irã.

Acho que haverá uma desestabilização completa do Iraque, que pode se espalhar pela região do Golfo Pérsico, principalmente para o Kuweit e o Bahrein. Bahrein é majoritariamente xiita e sempre foi influenciado pelo Irã. Em árabe, Bahrein significa “dois mares”: uma parte é a ilha onde se situa o país, e a outra, a atual província saudita de Dahram. Creio que Qatar e Emirados Árabes Unidos não se envolverão.

Os chineses compram petróleo do Sudão e do Irã. Eles construíram dois portos no Mar da Arábia, um no sul do Paquistão e outro no sudeste do Irã, para evitar o Estreito de Malaca, controlado pelos EUA. Desses portos, o óleo segue por via rodoviária até a China. Eles estarão preocupados antes de mais nada com esses portos. Turquia, China e principalmente Rússia serão muito importantes no desenrolar da crise. Será preciso esperar alguns dias até que os EUA tenham retirado seus cidadãos do Iraque.

Evidentemente, haverá um aumento do preço do petróleo, que de certo modo nos beneficia, porque a exploração do pré-sal custa caro e pode se tornar uma alternativa em caso de colapso da oferta. Espero que nosso presidente (Jair Bolsonaro) não faça nenhum movimento precipitado. Acho que não o fará, até porque vem sendo contido, como ocorreu no caso da prometida transferência da embaixada brasileira para Jerusalém, que não vingou. Apesar do alinhamento com EUA e Israel, tudo que ele acabou fazendo foi abrir um escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) em Jerusalém. Mas, se você prestar atenção, o escritório foi aberto em Jerusalém Ocidental (território israelense desde 1948). A posição tradicional do Brasil, alinhada com as resoluções da Organização das Nações Unidas, é de que Jerusalém teria status binacional, com a parte ocidental destinada aos judeus, e a oriental, aos árabes.

Nossos interesses falarão mais alto. Não temos interesse de nos alinhar com ninguém. Temos grandes interesses na Arábia Saudita, tanto que a ministra da Agricultura, Teresa Cristina, foi para lá quando houve mal-estar em relação à questão de Jerusalém. O Irã é também grande comprador de produtos brasileiros, especialmente de grãos, carnes e alguns manufaturados.

O Globo