Mais pobres, evangélicos são público-alvo do PT

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Agência PT

Líder do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo (GEPP) da PUC em São Paulo, o professor Edin Sued Abumanssur foi convidado a participar de ao menos três encontros com lideranças do PT em 2019 para discutir elos possíveis dos neopentecostais com partidos progressistas e o fenômeno de aproximação deste segmento com o presidente Jair Bolsonaro.

O cientista social já chegou a ser filiado do PT, mas se desvinculou do partido nos anos 90. De família protestante, do Líbano, Edin tem hoje interesses estritamente acadêmicos sobre o tema. Ele conta que falou “com todas as letras”, aos petistas, que é um equívoco misturar o discurso político com o religioso.

“Em termos de política, a Igreja Católica talvez seja um parceiro muito mais importante e relevante do que os evangélicos”

Para Edin, o PT só terá eficácia nesta reaproximação se ela ocorrer pela via política, com o desenvolvimento de políticas públicas e sociais voltadas para as classes C, D e E, onde se concentra, em massa, o eleitor evangélico. O professor acredita, ainda, que seria muito mais eficaz se o PT se preocupasse em entender os rumos da Igreja Católica. Veja a seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O resultado da eleição de 2018, com a expressiva votação de evangélicos em Bolsonaro, deixa a esquerda inquieta. Como o sr. observa o envolvimento do neopentecostalismo com a política?

Edin Sued Abumanssur: Os pentecostais sempre estiveram envolvidos em política. [Antes] Acontecia mais na membresia, não havia proposta formal e institucional de conquistas de espaços de poder. Havia a preocupação de estar presente na dinâmica política nacional. O exemplo mais clássico é a participação de muitos pentecostais nas Ligas Camponesas de Francisco Julião, no Nordeste. Os membros das igrejas pentecostais estão presentes em todo leque partidário contemporâneo, no Psol, PT, PSL, MDB, PSDB. Ser pentecostal não significa ser alinhado à direita. E no que diz respeito aos movimentos sociais, os pentecostais também sempre tiveram atuação. Participam não por serem pentecostais, mas por serem cidadãos que estão presentes nas questões sociais que demandam ação e organização política, como no MST e o MTST.

Valor: O que difere este tipo de participação política mais antiga para o que ocorre agora é a proposta formal de conquista de poder?

Edin: O povo pentecostal sempre esteve atuante nos movimentos e partidos. Os líderes pentecostais, por conta do acesso à mídia, televisão e rádio, tiveram visibilidade. Os pentecostais, há muitas décadas, estão presentes em rádio e agora também na TV. A TV é mais dos anos 80 pra cá. E rádio é dos anos 50. A televisão capitalizou a presença dos pentecostais no imaginário popular. No início, o interesse fundamental era de evangelização. Essas lideranças pentecostais começaram a entender que esse era um instrumento de poder muito grande, e que para eles manterem esse poder precisariam ter maior presença na política institucional partidária, no Congresso, porque a concessão de canais de rádio e TV passa pela Comissão de Comunicação da Câmara. Ao perceberem isso, começaram a política institucional e partidária com outro olhar. Já nos anos 80, Edir Macedo tinha essa perspectiva. Ele teve a percepção de que não só a presença e o poder da Igreja passariam pelo Congresso e pela parte institucional da política, mas a própria proteção da igreja. Era importante, para defender a organização dele, que estivesse presente no Congresso. Tem a ver com questões econômicas e acesso à mídia propriamente dito.

Valor: A força da bancada evangélica se cristaliza nos anos 2000?

Edin: No final dos anos 90 começam a se organizar mais informalmente. A bancada evangélica é pequena, mas barulhenta. Os líderes evangélicos não são apenas os políticos da bancada, mas outros, como Silas Malafaia, que não estão no cotidiano do Congresso, mas têm influência forte. Tem de tudo nesta bancada, há várias correntes, os protestantes tradicionais, pentecostais, etc. Essa bancada tem maior visibilidade, de fato, nos anos 2000. Fico desconfiado dos números inflados, porque isso os interessa. Até 2012, 2013, essa bancada tinha contornos menos nebulosos. Hoje é muito nebuloso.

Valor: Nebuloso em que sentido?

Edin: Numérico, mas também nebuloso em outros sentidos. Qual é a pauta dessa bancada? A gente não sabe. Eles têm uma pauta moral, que agrega a maior parte desses deputados, mas não todos. A Igreja Universal do Reino de Deus sempre defendeu o aborto. No entanto, pararam com esse discurso porque perceberam que os eleitores eram mais conservadores que a própria igreja. Tem uma questão eleitoral ligada a isso. Então, nem mesmo a pauta evangélica é evidente. Do ponto de vista político, os contornos também são nebulosos. Evangélicos à esquerda, como a Benedita da Silva, são contra o aborto. O que de fato é a bancada? Os políticos inflam o número, falam em 80, 90 deputados federais.

Valor: A frente evangélica tem 195 deputados e 8 senadores.

Edin: Não tem nem como. Não tem tanto evangélico assim no Brasil [risos] para que haja uma proporção entre o número de representantes no Congresso e o número da população evangélica nesse montante.

Valor: E quantos evangélicos temos no Brasil? A curva de católicos cai gradualmente, enquanto os evangélicos estão em ascensão.

Edin: É verdade. Teoricamente, em algum momento essas duas curvas se cruzarão. A projeção é que em 2050 a maioria da população brasileira já seria evangélica. Acho que isso não vai acontecer, por uma questão sociológica. Tem um limite de crescimento para esse tipo de movimento. A presença evangélica será muito significativa, determinante, mas não em termos numéricos. Os católicos jamais deixarão de ser maioria no Brasil.

Valor: Procede a projeção de que no próximo censo os evangélicos podem chegar a 30%, e os católicos ficariam em 50% da população?

Edin: Para o censo deste ano eu acredito que os católicos devem estar em torno de 58%. Os evangélicos devem bater em 27%, 28%. Se chegar a 30% daqui a alguns anos, acho que será o limite. Mas esta é uma projeção opinativa. A base desses movimentos [evangélicos] não suporta um crescimento muito grande. O peso acaba sendo muito grande e a tendência é desmoronar, porque têm pés de barros, digamos assim. Creio que o limite de crescimento fica em torno de 30%.

Valor: Os governos do PT tiveram proximidade com líderes evangélicos que hoje estão com Bolsonaro. O que explicaria essa migração de apoio político?

Edin: Essas igrejas migram na mesma proporção que a população migra. Essas igrejas não são diferentes, na média, daquilo que a população pensa e sente.

Valor: Quer dizer então que a população que mudou e as igrejas perceberam?

Edin: É. Essas igrejas já estiveram muito alinhadas com propostas do governo do PT, no início dos anos 2000. O vice-presidente de Lula [José Alencar] era de um partido [o PR] dominado pela Igreja Universal do Reino de Deus, embora não fosse da igreja. Uma coisa curiosa é que a Igreja Católica, na reunião anual da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), nunca havia recebido um presidente da República. A primeira e única vez em que isso ocorreu foi quando Lula esteve lá, em seu primeiro mandato. Havia o sentimento de que o governo do PT havia se distanciado dos católicos para fazer a aliança com os evangélicos. A Igreja Católica faz diferença, porque ela tem uma unidade de ação e capilaridade. Em termos de política, a Igreja Católica talvez seja um parceiro mais importante e relevante do que os evangélicos.

Valor: A abordagem do PT para se reaproximar de evangélicos é equivocada?

Edin: Acho um equívoco do PT tentar uma aproximação marcadamente religiosa. Falei isso com todas as letras em eventos do partido. Não existem pontes possíveis entre o discurso do PT e o discurso religioso das igrejas pentecostais. A ponte possível é via política, e não via religião. É um equívoco cristianizar ou batizar o discurso político do PT. O povo evangélico não vai ouvir isso daí. O povo evangélico não é bobo, como o povo em geral não é. As lideranças são muito inteligentes e hábeis para saber exatamente o que interessa a eles. Da mesma forma que se afinaram e se alinharam ao discurso da esquerda nos anos 2000, podem mudar de posição política quando interessa. Esse povo precisa de organização para viver, segurança, educação, transporte. Isso tudo pode vir com roupagem religiosa, mas, por trás, tem o interesse material, da sobrevivência.

Valor: O partido sustenta que a estratégia seria sensibilizar os evangélicos para o compromisso do PT com justiça social, os mais pobres, o que seria a visão de Jesus.

Edin: Teria um pouco de sentido se fosse um discurso originado no meio religioso. Mas a origem sendo no PT não vai colar. Isso deu certo nos anos 70 com a Teologia da Libertação, mas era fundamentalmente uma teologia católica que tinha uma perspectiva de política, de identidade nacional. A Igreja Católica é a única, até hoje, que tem um compromisso com a identidade nacional. Não é o evangélico que tem esse compromisso com a nação. É a Igreja Católica que faz o Sínodo para discutir o problema da Amazônia. É a Igreja Católica que discutiu, nos anos 70, a caristia. A perspectiva dos evangélicos é converter todo mundo. E aí a única aproximação que acontece é via pauta moralista. Não é o compromisso com a política nacional.

Valor: O que o PT deveria fazer?

Edin: Deveria tentar essa aproximação fazendo política. A má religião se combate com boa política. O discurso da igualdade, da justiça social, da liberdade, do direito que a população tem de se organizar de forma autônoma e livre, a defesa dos direitos do trabalhador. Um discurso que é a marca do PT e teria um eco grande junto a essa população evangélica. Porque ela é fundamentalmente pobre, trabalhadora e periférica e enfrenta a ausência das estruturas do Estado na educação, saúde, segurança e transporte. É quem mais sofre com a ausência do Estado. O PT não precisa de religião para se aproximar dessas pessoas.

Valor: O PT criou esses núcleos evangélicos que seriam interfaces com pastores e a comunidade religiosa. Qual a eficácia disso?

Edin: Na Igreja Católica, na hora em que um bispo fala, isso desce até a comunidade mais pobre e distante, por conta da hierarquia e da capilaridade. Por isso seria mais importante ao PT ficar atento ao rumo da Igreja Católica e tentar não se distanciar dela, do que ganhar os evangélicos. Os evangélicos são pulverizados, com lideranças disputando poder interno das igrejas estritamente por vaidades pessoais. Não tem ninguém que fale em nome dos evangélicos, nem a bancada. O PT pode ter acesso a uma liderança local, de uma igreja, na periferia X. A questão é se a comunidade vai acompanhar ou não a orientação do pastor. Os membros de uma igreja não se deixam convencer por uma questão de lógica e de verdade. Eles se convencem por questões estritamente afetivas. Se gostam do pastor, vão atrás do pastor.

Valor: O sr. acha que os evangélicos elegeram Bolsonaro?

Edin: Depende. Num certo sentido, sim, porque Bolsonaro teve votação significativa nas classes C, D e E, onde os evangélicos também têm maior presença. Não foram os evangélicos que elegeram Bolsonaro, mas essa camada social onde os evangélicos têm maior presença. No Maranhão, podemos afirmar que os evangélicos elegeram o Flávio Dino (PC do B)? Essa é a questão. No Nordeste, onde Bolsonaro teve a menor quantidade de votos, os evangélicos fizeram diferença? Fico muito na dúvida. Estamos colocando a religião à frente de uma realidade social e política, tentando fazer uma leitura religiosa da realidade social. É um equívoco para os fins políticos e de disputa para o poder. A religião está sendo usada para articular interesses políticos. Não existe relação direta, imediata, ao discurso evangélico, da salvação, a Bolsonaro, ao PT, seja lá o que for.

Valor: Seria mais eficaz o PT analisar que políticas deixou de fazer para perder esse eleitorado?

Edin: Exato, rever o distanciamento do partido das organizações populares, a tentativa de aparelhar os movimentos sociais… Tudo isso enfraqueceu a presença do PT nas periferias. Não acredito que a religião tenha tido o poder de definir os rumos da política. O PT está fazendo essa movimentação de forma que não terá eficácia. A preocupação das lideranças do partido é com as eleições, deste ano e de 2022. Falei claramente: enfiem a viola no saco, porque essas duas eleições estão perdidas. O PT não vai levar nada em 2022. Mas tem coisa pra fazer? Tem. Teria que voltar a trabalhar as suas bases, apostando numa perspectiva de 20 anos. É a alternativa que vejo.

Valor Econômico