Zimbábue: milhões à beira da fome

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Jekesai Njikizana/AFP Getty Images

As pessoas começaram a fazer fila desde cedo, na esperança de comprar farinha de milho subsidiada no depósito do Conselho de Comércio de Grãos, administrado pelo governo, em Harare, a preços que ainda tinham condições de pagar. Depois de três horas, um guarda anunciou que o milho do depósito estava deteriorado, e portanto, não poderia ser vendido naquele dia. A multidão de 150 pessoas reagiu com desconfiança e ira.

“A vida é dura, tudo é caro, não há controle dos preços e a inflação está cada vez maior”, disse Benjamin Dunha, de 57 anos, encanador que ganha 700 dólares zimbabuanos por mês – cerca de US$ 38 ao câmbio oficial. Há menos de um ano, o seu salário valia cerca de US$ 700.

Uma combinação de governo desorganizado, derretimento econômico, seca e um ciclone catastrófico, no ano passado, precipitou o Zimbábue para mais perto do desastre da fome, hoje feroz na África meridional e uma das mais alarmantes do mundo. Embora a comida ainda não esteja necessariamente escassa, está se tornando algo fora das possibilidades do povo, excetuados poucos privilegiados.

“Nunca poderei enfatizar o bastante a urgência da situação no Zimbábue”, argumentou Hilal Elver, especialista independente dos direitos humanos na ONU sobre a segurança dos alimentos. Como ela afirmou, 60% dos 14 milhões de habitantes do país “não têm certeza de que irão se alimentar, e suas famílias não têm a possibilidade de obter alimentos suficientes para atender às suas necessidades básicas.”

A fome é um problema geral na África, mas no Zimbábue, outrora conhecido como o celeiro do continente, hoje aumentou com a má organização que deixou o país em sua mais grave crise econômica em dez anos. A inflação anual, que o Fundo Monetário Internacional considera a mais elevada do mundo, é de 300%.

“Aqui, o dinheiro perdeu o seu valor, agora”, afirmou Dunha, que tem oito filhos. O que ele têm para comer, contou, são legumes e sadza, um mingau grosso de farinha de milho fervida.

Gerald Bourke, porta-voz de operações do Programa Alimentos para o Mundo na África Meridional, a agência de combate à fome das Nações Unidas, afirmou que até pouco tempo atrás 60% da assistência aos zimbabuanos era na forma de dinheiro, mas que os beneficiários não querem mais os trocados. “A inflação é um problema cada vez maior e as pessoas disseram que preferem comida”, explicou.

Este mês, ele disse, a agência pretende adotar pela primeira vez um “programa de alimentos totalmente em espécie”, com a distribuição de rações mensais de grãos, óleo e suplementos alimentares para crianças de até 5 anos. A agência também pretende dobrar o número de beneficiários para quatro milhões.

Mesmo agora, comprar qualquer coisa além de farinha de milho é considerado um luxo. “Nós comprávamos nossos alimentos favoritos, como sorvete, queijo, bacon, linguiça e presunto, e preparávamos bons cafés da manhã para as nossas famílias”, recordou Moreblessing Nyambara, de 35 anos, professor do primário de Harare. “Mas isto tornou-se uma visão do passado.”

Muitos historiadores atribuem a desastrosa situação do Zimbábue ao legado de Robert Mugabe, o pai da independência, em 1980. Ícone do anticolonialismo, Mugabe tornou-se um déspota e presidiu o declínio de terras mais prósperas da África, à epoca. Foi derrotado em 2017, morreu em setembro aos 95 anos. Qualquer esperança de que o antigo aliado e sucessor de Mugabe, Emerson Mnangagwa, possa reviver a economia declinou quase completamente.

Com a última colheita de milho do país reduzida à metade em relação a 2018 por causa da seca, disse Bourke, a ajuda continuará até pelo menos o fim de abril, época da próxima safra. Mas ele não se mostrou muito otimista. “Segundo as previsões meteorológicas, devemos esperar que o crescimento da lavoura se dará em uma estação seca demais”, afirmou.

Ursula Mueller, vice- coordenadora da ajuda emergencial da ONU, disse que as dificuldades do país se devem em parte ao agravar-se da crise climática na África meridional. A seca reduz a colheita, e portanto a comida, o que por sua vez provoca o declínio da saúde e da educação, e aumenta a criminalidade e outros “mecanismos de convivência negativos”. E continuou: “Não se trata apenas da escassez de alimentos”, prosseguiu. “Trata-se de uma situação muito mais complexa. As pessoas deparam-se com certas escolhas: Devo procurar tratamento contra o HIV ou comida?”

Estadão