Ditadura militar usava fake news contra democracia

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Foto: Reprodução

Os mais antigos se recordam. Fase final da ditadura. Em 1982, paróquias da cidade recebem o jornal O São Paulo, editado pela Cúria Metropolitana, com o “mea culpa” do cardeal Paulo Evaristo Arns na manchete —“por tudo aquilo que vem acontecendo de errado na Igreja de nosso tempo”.

O exemplar ideologicamente falso tem as dimensões e o padrão gráfico do original: cabeçalho, data (Semana de 20 a 26 de agosto), expediente e até publicidade.

É um modelo clássico de fake news que antecede o universo digital, produzido para confundir leitores e reafirmar compromissos criminosos de resistência à abertura política.

A nota do diretor, atribuída ao combativo bispo d. Angélico Sândalo Bernardino, para explicar a reforma editorial do semanário católico, declara que o “número especial” é resultado de “nossa penitência”.

Na primeira página, duas chamadas repetidas: “subversão crescente na igreja”. Nas páginas internas, propaganda do livro “A Santinha que Venceu o Demônio” e artigo do intelectual conservador Lenildo Tabosa Pessoa sobre repreensão do Vaticano a bispos brasileiros.

Na contracapa, é construído um decálogo para rastrear a “besta-fera comuno-socialista”, gerada “no caldo da cultura de corrupção de costumes, obscenidades, excessos de consumismo, de vícios, de tóxicos e de sexo”.

Os bastidores do caso são narrados por Ricardo Kotscho em reportagem da Folha de S.Paulo (13.out.1982).

Pistas levantadas pela igreja são mantidas em sigilo pelo advogado da Cúria, José Carlos Dias, até a operação. Não há confiança na Delegacia de Ordem Política, chefiada por Romeu Tuma.

O nó da conspiração desata com a localização da gráfica onde o falso O São Paulo foi impresso. O principal suspeito é editor e proprietário do Jornal de Minas, Afonso de Araújo Paulino, conhecido em Belo Horizonte por ligação com a extrema-direita e agentes de segurança.

Naquele longínquo mês de agosto, o boletim Letras em Marcha (1970-2000), editado no Rio de Janeiro, porta-voz de linha-dura militar (em 1986, seria acusado de “extremismo” pelo ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves), também bombardeia o clero.

Uma nota da coluna “Subversão em marcha” atesta: “Padre progressista prega publicamente homossexualismo e masturbação com ostensiva aprovação de seu Arcebispo”.

Outro alvo é a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), reunida em Campinas, “com a bandeira da URSS hasteada”, para ouvir palestra do historiador Luiz Mott —“Heterossexualidade, doença ou perversão?”.

Para completar o cenário, ainda em agosto, outra notícia constrangedora: correspondência postada por religiosa é violada nos subterrâneos do Correio (estatal), com alteração do conteúdo do envelope, que passa a ter quadrinhos com enredo aviltante para os movimentos eclesiais de base.

Há algo de semelhante na gênese do grotesco ataque desferido contra o jornal católico no século passado e a cafajeste onda de ofensas à jornalista Patrícia Campos Mello, que também atinge as mulheres e a Folha.

A diferença é de intensidade. Exemplares falsos de O São Paulo circulam de mão em mão. As mentiras sobre a repórter se espalham na velocidade da luz.

O presidente Jair Bolsonaro e o deputado Eduardo Bolsonaro, símbolos deste movimento sórdido de difamação, chafurdam no mesmo lamaçal em que chafurdavam, na década de 1980, facções clandestinas de militares e inimigos da democracia.

Redação com Folha