Evangélicos não acabarão com Carnaval, diz antropólogo

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Foto: Reprodução

Políticos neopentecostais, como o prefeito do Rio Marcelo Crivella, podem depreciar o carnaval, por convicção ou cálculo eleitoral, mas a natureza da festa invalida previsões de declínio na folia, mesmo com a mudança estrutural na sociedade brasileira, que terá mais evangélicos do que católicos, daqui a 12 anos, conforme estima o IBGE. É o que afirma o antropólogo e professor da PUC-Rio Roberto DaMatta, de 83 anos, para quem a interferência política ou religiosa no carnaval é inócua ou duvidosa.

Não que a festa não passe por transformações. Para DaMatta, o carnaval já mudou muito, mas nada garante que a força dos evangélicos altere a tradição. “Estatística não é profecia. Podemos ter perfeitamente bem uma maioria de evangélicos e ter carnaval. Os evangélicos podem fazer um bloco para eles. Uma das coisas que acontecem no carnaval é que todo mundo tem o direito de brincar e fazer o seu carnaval”, diz o autor do clássico “Carnaval, malandros e heróis”. Nos últimos anos, a festa tem visto o surgimento de blocos de rua gospel.

DaMatta lembra que a ditadura militar (1964-1985) foi um dos momentos em que a nudez nos desfiles de carnaval se fez mais presente e de modo até mais ousado, representando uma válvula de escape para uma sociedade que se via reprimida. No livro de 1979, o antropólogo destacou como a festa é regida pela inversão de valores, em que o “mundo fica de cabeça para baixo”. É quando o pobre se fantasia de rico, o homem se veste de mulher ou o famoso, por trás da máscara, se passa por anônimo. “Você pode abandonar sua crença religiosa e ser outra coisa. O carnaval não é uma profissão, um diploma. É uma festa, em que você abre mão de rotinas obrigatórias”, diz.

DaMatta pondera que, nos anos 1960, se a mesma estatística fosse feita, apontaria o crescimento das religiões de matriz africana e do espiritismo kardecista. “Essa religiões praticamente sumiram”, diz.

Para o antropólogo, porém, o carnaval já foi uma festa mais potente e vem passando por muitas transformações, seja por mudanças tecnológicas ou dos costumes. A pressão ocorre não só pelo aumento, à direita, do conservadorismo e da moral religiosa, mas também, à esquerda, pelo processo de modernização rumo a uma sociedade mais igualitária.

O discurso dito “politicamente correto” tem recriminado fantasias tradicionais vistas como desrespeitosas a exemplo de trajes de índio, muçulmano, cigana, baiana ou homens vestidos de mulher.

“O carnaval foi muito mais importante do que ele é hoje porque a sociedade brasileira era muito mais aristocrática, elitista e hierarquizada. Hoje ela está mais aberta, fraturada, no sentido positivo”, argumenta. Numa sociedade aristocrática, ilustra DaMatta, o homem não pode se vestir de mulher. “Hoje, a regra é o contrário, você tem uma liberdade em que os homens [praticamente] devem se vestir de mulher. Romperam-se alguns tabus”. A mudança de comportamento, diz, joga menos água no moinho do carnaval, baseado na inversão de papéis da sociedade.

Avanços tecnológicos também têm sua influência na transformação. “Uma das coisas que me atraíam no carnaval quando eu tinha 18 anos era ver mulher nua. Hoje estou com o computador aqui na minha frente e posso ver quantas mulheres nuas eu quiser. Isso é uma coisa brutalmente diferente, porque o que chamava atenção, sobretudo nos desfiles, era a nudez”, diz.

Hoje, no entanto, a nudez de um componente de escola de samba é proibida e leva à perda de ponto. “Esse é outro dado curioso. À medida em que a sociedade vai se modernizando, e fica mais democrática e mais igualitária, você começa a estabelecer normas em todas as áreas”, diz. Para DaMatta, o carnaval era “muito mais livre e solto” porque a sociedade era muito menor e mais bem estruturada do ponto de vista de poder. “Quem era mais poderoso podia ter mais licença. E quem era menos poderoso também tinha mais licença. Esse ‘eu posso fazer o que eu quiser’ está sendo colocado em discussão.”

Sobre a relação conturbada do prefeito do Rio com o carnaval, DaMatta afirma: “Não gosto do Crivella, mas ele não roubou a eleição. Como cidadão, tem direito de ir aonde quiser. Agora, se pensarmos que o papel como prefeito deveria ser hegemônico na vida dele, ele deveria ir [ao Sambódromo] mesmo sendo evangélico”.

Valor Econômico