Cineasta famosa na Europa repudia Regina Duarte

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Foto: Reprodução

Mais de quarenta anos depois de seu pai desembarcar em Estocolmo como exilado político da ditadura militar que se instalou no Brasil entre 1964 e 1985, a cineasta Carol Benjamin apresenta neste fim de semana na capital sueca o documentário “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”. O filme revela o impacto dos anos da repressão sobre três gerações da família da diretora. Longa de estreia da cineasta, a obra integra a mostra competitiva do Festival Tempo, a maior mostra de documentários da Suécia.

Em novembro passado, “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil” conquistou a menção especial do júri no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã – o maior festival do mundo dedicado ao gênero. Mas Carol Benjamin alerta que o cinema brasileiro está em risco:

“Desde 2017, a Ancine (Agência Nacional do Cinema) está sendo desmontada. Com o presidente Bolsonaro, a situação piorou muito: os cineastas brasileiros estão sendo criminalizados”, afirmou em entrevista à RFI.

Sobre a posse de Regina Duarte na última quinta-feira (5) como a nova secretária especial de Cultura, a cineasta diz que “não se sentaria na mesa” com a atriz:

“Para a falar a verdade, eu não espero nada. Não acho possível que qualquer representante deste governo tenha qualquer tipo de diálogo com a classe artística. Eles nos taxaram de inimigos e querem nos destruir a todo custo. Nós artistas somos muitos, e temos visões de mundo diversas. Na minha opinião, não acredito que seja possível negociar com quem usa a tortura e o totalitarismo da ditadura como argumentos moralizantes. Eu não sentaria na mesa com Regina, nem com ninguém deste governo. No meu ponto de vista, o carisma da Regina é muito perigoso, porque dá ares de projeto cultural à destruição absoluta da cultura que deseja o nazifascismo do atual governo brasileiro.

O pai de Carol, o cientista político e editor César Benjamin, passou cinco anos preso nos porões da ditadura, incluindo mais de três anos e meio de confinamento em uma solitária. Militante do movimento estudantil secundarista, ele se juntou à luta armada contra o regime e foi preso em 1971, com apenas 17 anos de idade. Torturado, chegou a ficar surdo de um ouvido.

No filme, Carol Benjamin conta como a prisão e tortura do filho mais novo transformaram a dona de casa Iramaya Benjamin, mãe de Cesar e avó da diretora, em uma militante pela anistia. O documentário começa em Estocolmo, onde César Benjamin viveu como exilado político durante dois anos após ser expulso do Brasil em 1976.

“Em 2012, quando minha avó Iramaya faleceu, entrei em contato com uma velha amiga sueca dela chamada Marianne Eyre, que trabalhava na Anistia Internacional na época do caso do meu pai e com quem eu sabia que minha avó havia desenvolvido uma amizade profunda. E a resposta chegou, rápida e transformadora: Marianne me contou que guardava em sua casa uma caixa com todas as cartas que minha avó escreveu para ela ao longo de 36 anos de amizade, de 1972 a 2008. Movida pelas cartas da minha avó, eu decidi começar pesquisas para um documentário”, conta Carol.

Mas naquele momento, a cineasta diz ter sido confrontada com um silêncio aterrador:

“Meu pai, Cesar, não apoiou o filme, e disse que não faria parte dele. Desde então, nosso relacionamento ficou muito comprometido. E a verdade é que a ausência do meu pai no filme acabou atraindo ainda mais atenção para ele, à medida que muitas vezes me vi tentando entender seus motivos para se negar a falar comigo sobre Iramaya. Por isso, eu decidi fazer um filme sobre o silêncio: o silêncio como ferramenta de apagar memórias.”

Mas Iramaya Benjamin falava – e muito. Para a diretora, essa foi a fórmula que a avó encontrou para lidar com a depressão sem expô-la a ninguém: continuar contando, até o fim da vida, as histórias de seus feitos épicos contra os militares. Com inúmeras entrevistas a jornais e um livro publicado (“Ofício de mãe: a saga de uma mulher”), Iramaya tornou-se “a mãe da anistia brasileira”, um ícone da memória dos tempos de ditadura no Brasil.

Hoje, a neta Carol diz compreender que a avó estava completamente sozinha na necessidade de olhar para o passado a fim de formular uma narrativa sobre o que se passou.

“Porque, diferentemente de memórias de guerra, que tendem a ser longas e subjetivas, a violência dos regimes autoritários tende a perpetuar o silêncio. O silêncio dos torturados, que não querem relembrar situações de humilhação e extrema dor. Silêncio dos mortos e desaparecidos, que já não têm mais voz. Silêncio de uma sociedade que finge não saber o que acontece nos porões de uma ditadura, seja por medo ou conivência. No Brasil, os militares acreditavam que o silêncio seria o primeiro estágio do esquecimento. E essa falta de memória alimenta a permissividade do Estado até hoje, e permite que nossa sociedade ainda naturalize práticas violentas como métodos institucionais”, destaca a cineasta.

O pai, César, nunca gostou de falar do passado. Na família, era como um assunto tabu. No processo da feitura do filme, Carol Benjamin entendeu que o pai só começou finalmente a falar sobre esse período de sua vida depois da morte de Iramaya. E a cineasta sentiu a necessidade de investigar o porquê.

“Essa foi uma busca no sentido de compreender como a política fraturou essa relação entre mãe e filho, fazendo Iramaya sentir uma urgência tão radical de proteger e salvar César que ela começou a viver a vida dele: começou a viver por ele, não mais por ela mesma. Ela se tornou a narradora do destino de meu pai, compartilhando com todos seu papel decisivo na vida dele e falando em seu nome”, diz a diretora.

Para Carol Benjamin, essa é uma questão subjacente a todas as relações entre pais e filhos, mas que se intensificou no caso de Iramaya e César por eles terem sido sujeitos à violência do Estado. Segundo ela, a violência do Estado provoca traumas que penetram o tecido social. Por isso, a diretora buscou costurar essas duas camadas – a particular e a histórica – no documentário “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”.

“Veja bem se não soa absurdo: no Brasil, os documentos oficiais dos 21 anos de ditadura militar permanecem inacessíveis até hoje, e os crimes cometidos pelo Estado nunca foram julgados. Em 1979, seis anos antes da abertura democrática, a Lei da Anistia foi promulgada pelos militares, quando ainda estavam no poder. A lei permitiu que meu pai voltasse ao Brasil após o período do seu exílio aqui na Suécia. Embora isso parecesse ser uma vitória, o filme mostra que a forma como a lei foi escrita e promulgada estabeleceu uma espécie de pacto de apagamento de memória. A Lei da Anistia perdoava não só os que foram condenados por causas políticas, mas estendia o benefício aos comandantes que torturaram e mataram tantas pessoas em nome do regime. Por meio dessa lei, as autoridades militares anistiaram a si mesmas enquanto ainda estavam no poder, e assim puderam evitar o julgamento posterior. A sociedade brasileira nunca reviu essa lei. Os generais pediram para ser esquecidos, e foram atendidos. Trata-se de um trauma histórico”, destaca Carol Benjamin.

O tio da diretora e irmão de seu pai, o jornalista e político Cid Benjamin, também foi preso e exilado.

A menção especial do júri para “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil” no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, em novembro, foi mais uma conquista em um ano exuberante para o cinema brasileiro – que incluiu a premiação internacional de filmes como “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Karim Aïnouz, e “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Este ano, o orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que permite o financiamento de filmes no Brasil, sofreu um corte de 43% em 2020 – o menor orçamento dos últimos sete anos. O presidente Jair Bolsonaro também anunciou que haverá “filtros” para impor controles sobre as produções audiovisuais brasileiras. Para Carol Benjamin, o cinema brasileiro está sob ameaça:

“No Brasil, após muitos escândalos de corrupção e uma enorme crise econômica, há um aumento notável no número de pessoas que defendem uma intervenção militar no Congresso, colocando em risco nossa frágil democracia. Sendo o cinema uma ferramenta essencial para construir a visão e a memória do país, ele também está em risco. No Brasil, tivemos quase vinte anos de políticas governamentais de apoio e investimento ao setor audiovisual, e essas iniciativas ajudaram a indústria a se estabelecer de forma vigorosa. Hoje, temos uma indústria pulsante e muito bem-sucedida do ponto de vista econômico e artístico, mas que vem sendo desmantelada por interesses puramente ideológicos”, ela diz.

Em momentos como este, observa a diretora brasileira, o apoio internacional é decisivo: o Brasil tem profissionais de experiência e talento, assim como maquinário e conhecimento da engenharia da indústria, além de excelentes casas de finalização e um circuito exibidor considerável. Mas não há mais financiamento interno:

“Meu filme, apresentado aqui no Tempo Festival de Estocolmo, foi um dos 18 projetos que entraram numa lista negra do governo, de projetos ditos “subversivos”. Isso quer dizer que nós não teremos acesso ao fundo público para distribuição, e por isso precisamos captar com fundos ou instituições internacionais que compreendam a importância das discussões levantadas pelo filme e nos apoiem financeiramente. Nosso principal objetivo de impacto para a campanha de lançamento do filme no Brasil é articular famílias que também foram atravessadas pela violência institucional do Estado brasileiro – não só da ditadura, mas até os dias de hoje – , promovendo a composição de narrativas sobre a importância da construção da memória não apenas como uma necessidade do passado, mas também como uma urgência do presente”, diz Carol Benjamin.

Há duas semanas, o presidente Jair Bolsonaro indicou para a diretoria da Ancine o pastor Edilásio Barra, também conhecido como Tutuca, e a produtora Verônica Brendler, diretora do Festival Internacional de Cinema Cristão. Os dois deverão agora passar pela sabatina no Senado.

“O projeto de Jair Bolsonaro é inimigo da cultura, pois deseja um povo ignorante, que não conhece sua história, que não cultiva sua memória e que não seja capaz de construir um filtro crítico sobre os assuntos de um país. Na minha opinião, qualquer pessoa que aceitar um convite para compor a diretoria da Ancine neste momento estará sujeita a executar o projeto de não-cultura do atual presidente. Se fizer algo diferente, rapidamente será dispensado do cargo”, acredita Carol Benjamin.

Rfi