Contra discriminação, advogadas criam escritórios só de mulheres

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Foto: Reprodução/OAB

Um processo de aquisição de empresas emperrou e a advogada que cuidava do negócio precisou prolongar seu período fora de casa. Perdeu assim a festa de aniversário do filho. Quando voltou, a criança virou as costas e disse que não mais a reconhecia como mãe. A advogada pediu demissão.

O relato foi ouvido em 2014 pela pesquisadora Patrícia Bertolin, professora de direito da Universidade Mackenzie, de São Paulo, quando preparava o livro “Mulheres na Advocacia – Padrões Masculinos de Carreira ou Teto de Vidro”, que trata dos gargalos que dificultam a chegada das mulheres ao topo dos escritórios de advocacia.

Ela entrevistou 32 advogados e advogadas, sob a condição de anonimato, de 14 dos maiores escritórios do país que atuam em todas as áreas do direito. Naquele ano, as mulheres eram menos de 30% dos sócios dessas bancas, apesar de serem metade dos funcionários.

Passados seis anos da pesquisa, pouca coisa mudou. Segundo a edição de 2019 da publicação jurídica Análise Editorial, a média de mulheres sócias dos maiores escritórios do país mantém-se em 26% desde 2006.

Para mudar esse quadro, advogadas têm inaugurado escritórios exclusivamente femininos ou de ampla maioria de mulheres na chefia, alguns com razão social “sociedade de advogadas”.

Há hoje só no estado de São Paulo, segundo a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), 6.069 sociedades formadas exclusivamente por mulheres (incluindo também escritórios individuais).

Nasceram também movimentos de mulheres em busca de espaço nos debates jurídicos e nos cargos de poder de órgãos públicos e privados do sistema de Justiça. Esses grupos promovem seminários e ações para ascensão da mulher nas carreiras jurídicas.

“Durante a pesquisa verifiquei que as mulheres ascendem na estrutura dos escritórios até o nível de advogado pleno [segundo estágio]. Entre o nível pleno e sênior há muita evasão [o estágio seguinte é ser sócio]”, diz a pesquisadora Patrícia Bertolin, que hoje dá palestras sobre o tema em escritórios e eventos para advogados.

“Coincide o ponto da carreira com o do relógio biológico, que é quando elas decidem ter filhos. Aí, muitas optam por ir para os departamentos jurídicos das empresas [onde há horário de expediente mais definido]. Algumas mulheres, para ascender nos escritórios, retardam a maternidade.”

Foi justamente o tempo para os filhos que fez com que Claudia Bernasconi trocasse um dos mais importantes escritórios criminais do país por uma banca chefiada por mulheres. No atual escritório são seis sócios, só um deles homem. Ao todo, trabalham no local 25 pessoas, 19 delas mulheres.

“Eu era sócia de um grande escritório no qual eu adorava trabalhar e poderia ser sócia de lá até hoje. Mas por uma escolha pessoal eu acabei optando por ter uma vida que também me permitisse ter tempo para estar com meus filhos. Aí eu saí e fui trabalhar num escritório de meninas, que é muito diferente”, diz Claudia, de 50 anos e que tem dois filhos.

“No escritório de mulher, se você olha para as pessoas e fala ‘me ligaram da escola e meu filho está doente’, a sua chefe fala ‘vai, vai ver o que o seu filho tem’. No outro escritório eu ligava para o meu marido e falava assim: ‘ligaram da escola. O Caio está com febre e precisa buscar’. É uma questão cultural mesmo. É muito mais fácil uma outra mulher entender que você vai se atrasar porque seu filho está doente.”

A incompreensão com o papel materno e a gravidez vem também dos clientes. A criminalista Maíra Beauchamp Salomi relatou um episódio em que um contratante, durante uma reunião, apontou para a sua barriga e disse: “Quando você vai resolver esse problema?”. Ela estava na 36ª semana de gravidez. Acabou sendo excluída da coordenação do trabalho.

“As pessoas esperam que você trabalhe como se não tivesse filhos e que ao mesmo tempo seja mãe em tempo integral”, diz Maíra, que hoje tem um escritório em que todas as sócias, advogadas e funcionárias são mulheres. Só há um homem na firma, estagiário. Ela, aos 35 anos, é mãe de duas crianças.

O tema da maternidade tem espaço central nos movimentos de advogadas que nasceram para debater o papel da mulher no direito. No dia 18 de março, um grupo chamado Elas Pedem Vista, de Brasília, lançará a cartilha “Boas Práticas sobre Parentalidade na Advocacia”.

“É um trabalho para ajudar as mulheres a conciliar carreira jurídica e a criação dos filhos”, diz Cristina Neves, uma das fundadoras do grupo.

O movimento foi criado em 2017 e tem o objetivo de discutir o papel da mulher no sistema de Justiça. Hoje elas fazem reuniões mensais e as integrantes pagam uma anuidade para bancar os eventos que organizam.

O Elas Pedem Vista ampliou o olhar para além do papel da advogada e também acompanha julgamentos de temas que impactam a mulher, como a ampliação do acesso ao porte de armas –o que, na visão delas, pode resultar no aumento do feminicídio.

Já o grupo Mulheres com Direito foi formado em 2018, em São Paulo, para lutar pelo aumento do espaço das profissionais do direito em debates acadêmicos e em entidades de representação de classe.

“Algumas advogadas perceberam que dentro da própria OAB, nos escritórios de advocacia, no Ministério Público, assim como também na academia não havia um espaço equilibrado para homens e mulheres”, diz Fabiana Garcia, fundadora do movimento.

“Então, qual foi a nossa constatação? Dentro das comissões, essas mulheres estão sempre na plateia, nos auditórios, lotando o público de eventos. Porém, quando a gente vai olhar a coordenação, a direção, a presidência de comissões, de órgãos deliberativos, tem alguma coisa que faz com que nós não cheguemos ao topo”, diz Fabiana.

Logo no evento de lançamento do movimento, o Mulheres com Direito reuniu mais de cem pessoas na Assembleia Legislativa de São Paulo, em abril de 2018. Naquele dia, o grupo divulgou a campanha pela internet #nãoqueremosserplateia.

Algum efeito prático já pode ser notado. Em 21 de fevereiro deste ano, o diretor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Floriano de Azevedo Marques Neto, publicou uma portaria determinando que os eventos acadêmicos da faculdade deverão ter pelo menos 25% de participantes do gênero feminino na composição das mesas de expositores, debatedores, mediadores e oradores.

Na USP elas não estarão só na plateia.

Redação com Folha