Coronavírus: o choque dos terraplanistas com a realidade

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Foto: AFP

Para Mad Mike Hughes, o choque com a realidade se deu à 1:52 da tarde do último dia 22 de fevereiro, que foi também o instante final de sua movimentada vida. A realidade, no caso, se apresentou para ele na forma do chão duro e seco do deserto californiano, no qual ele colidiu de foguete a mais de 300 quilômetros por hora.

Mad Mike, um aventureiro que gostava de riscos, disse uma vez num documentário sobre sua vida que não iria acreditar na Nasa ou no bilionário Elon Musk quanto ao planeta ser redondo. “Vou construir meu próprio foguete e ver com meus próprios olhos que formato o mundo onde vivemos tem.”

Foi o que ele fez, mas seu paraquedas enroscou na plataforma de lançamento e foi arrancado do foguete, antes dele subir mais de um quilômetro de altura e depois despencar lá do alto, perfurando uma imensa nuvem e depois se estatelando na dura realidade da vida (se você for sádico o suficiente, veja o vídeo).

Mad Mike fazia parte de uma comunidade vibrante e de tamanho considerável: a dos terraplanistas, que vivem intensamente a ficção de que a Terra é plana. Vale a pena ver o documentário sobre essa turma: você vai notar que eles não são completos malucos. São pessoas de aparência normal – uns deles capazes de conversas inteligentes, vários bem ajustados socialmente.

Gente como eu e você, mas que, atraídos por uma ficção transmitida pelas redes sociais, escolheram acreditar nela. E foram acolhidos por uma comunidade que validou essa ficção e tornou-a confortável – um fenômeno destes nossos tempos de irrealidade extrema.

Será que Mad Mike mudou de ideia e se convenceu da redondeza da Terra quando a viu curvar sob os seus pés, antes de começar a acelerar na direção dela? Jamais saberemos. Mas o fato inegável é que, no caso dele, a ficção não sobreviveu ao impacto acelerado com a matéria da qual a realidade é feita.

Lembrei de Mad Mike enquanto acompanhava a forma como dois outros indivíduos que habitam ficções reagiram à eclosão da pandemia Covid-19, nas últimas semanas – refiro-me a Donald Trump e Jair Bolsonaro. Ambos lidaram com o coronavírus da forma como lidam com tudo que se apresenta para eles.

Primeiro: não ouviram os especialistas. Saíram soltando opiniões tiradas dos turbulentos mundos fictícios de dentro de suas cabeças. Trump, por exemplo, quando ficou sabendo que os principais infectologistas do mundo calculavam em 3,4% a letalidade do vírus, disse à população: “acho que esse é um número falso.

Esse é só um palpite meu, mas, pessoalmente, acho que o número está bem abaixo de 1%”. Bolsonaro, que também está acostumado a dar palpites bem específicos sobre coisas de que não entende nada – como por exemplo quando demitiu o físico Ricardo Galvão do Inpe porque achou muito altos os índices de desmatamento mostrados em fotos de satélite que ele nem é capaz de entender – também saiu minimizando o vírus. Disse que era só uma gripe – coisa que definitivamente o Covid-19 não é.

Também se dedicaram ao seu esporte preferido: atribuir culpa aos inimigos. Trump começou a chamar o vírus de “estrangeiro”, para colocá-lo na mesma categoria dos mexicanos e centro-americanos que ele ataca para mobilizar sua base radical. Também botou a culpa na imprensa (“fake media”), no Partido Democrata e na China, como de hábito.

Bolsonaro igualmente culpou a imprensa, e alguns de seus defensores começaram a enxergar na pandemia “traços históricos dos comportamentos de regimes comunistas” e a culpar o “estamento burocrático globalista”, que é como eles chamam a suposta classe de bilionários comunistas que mandam no mundo (sim, bilionários comunistas).

Inegavelmente os dois atrapalharam, ao fazer declarações sem se preparar, cheias de desinformação, atropelando e confundindo as mensagens opostas das autoridades de saúde. Ambos vão certamente causar mortes – mortes reais, de gente real, prejudicada pelo aumento nas transmissões que vai resultar da ignorância dos presidentes. Nisso, Trump se superou.

Numa entrevista coletiva, seu ministro da saúde e a diretora do centro de controle de doenças ambos alertaram que mais casos iriam aparecer. Trump então pegou o microfone e disse: “se você tem 15 casos, em alguns dias, esse número cai para perto de zero… Fizemos um ótimo trabalho.” Nada do que ele disse era baseado em nenhum fato concreto. Os especialistas ficaram lá, olhando atônitos.

Ambos os presidentes são culpados de atrapalhar a capacidade de seus Estados de lidarem com a ameaça, ao atacarem os sistemas de saúde de seus países, com base em uma outra ficção, a de que saúde pública é uma ideia socialista – quando é sabido, inclusive pelos liberais sérios, que um bom sistema de saúde pública acessível a todos é essencial em qualquer país.

Ambos vêm distraindo as populações de suas nações das atitudes difíceis que precisam ser tomadas, ao ficarem constantemente mudando de assunto, falando das ficções que existem em suas cabeças, sem se ocupar com a crise real à sua frente. Um dos filhos de Bolsonaro, por exemplo, saiu plantando na imprensa a notícia falsa de que o pai tinha sido infectado, só para depois acusar a mídia de falsidade.

Nada de novo, na verdade. Trump e Bolsonaro comunicam-se basicamente por meio de mentiras, acusações falsas, mimimi, dados inventados. No geral, essa abordagem tem funcionado nesta nossa era da irrealidade. Assim como há gente suficiente disposta a acreditar que a Terra é plana, uma quantidade razoável dos eleitorados do Brasil e dos EUA parece topar comprar a ficção de seus presidentes. Não é uma maioria, mas é uma minoria grande o suficiente para permanecer no poder, apostando na divisão entre seus inimigos.

Mas será que dessa vez eles vão conseguir se safar? “Crises clareiam”, escreveu num artigo a jornalista Susan Glasser, da revista New Yorker. “Quanto maior a crise, mais clareza ela traz, o que ajuda a entender por que a incompetência, a desonestidade e a insensibilidade da presidência de Trump ficaram mais evidentes do que nunca nos últimos dias.”

Dessa vez, as mentiras vão ter que se chocar com a realidade de uma doença mortal avançando para perto de nós. Isso vai forçar seus seguidores a fazer uma escolha: diante do risco da morte, será que não é melhor voltar a acreditar na ciência, na saúde pública, na verdade?

No seu Diário do Fim do Mundo, Bruno Torturra bem lembrou que lidar com uma pandemia vai exigir de nós atenção com nossos fluidos, com nossos órgãos, com a respiração, com a distância entre nós: dados de inegável realidade, que talvez nos ajudem a desconectar das ficções, a parar de prestar tanta atenção nesses panacas.

Ou será que eles seguirão acelerando até nos estatelarmos todos no chão?

Época