Maior consultoria do mundo vê Bolsonaro como ameaça

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Foto: André Lessa / AE

Principal empresa de consultoria do mundo para avaliação de risco político, a Eurasia mudou, recentemente, para pior as perspectivas do Brasil. Até a pandemia do coronavírus, a consultoria acreditava que, apesar das hostilidades do presidente Jair Bolsonaro em relação às instituições, os governadores e a imprensa, o Congresso avançava para a aprovação de reformas que levariam a maior crescimento econômico, alimentando um ciclo virtuoso, a longo prazo, para o País. “Esse ciclo se quebrou”, diz o cientista político Christopher Garman, diretor da consultoria para as Américas. “E podemos ter agora um ciclo vicioso.”

Segundo Garman, por causa dos desdobramentos da crise gerada pela pandemia, o País pode correr, inclusive, o risco de um conflito institucional mais sério, se o presidente Jair Bolsonaro, em reação a um enfraquecimento político, continuar a apelar à retórica anti-establisment para inflamar as suas bases eleitorais.

Tudo vai depender, na sua avaliação, de como será a reação do Palácio do Planalto, nas próximas semanas, ao aumento da propagação da doença no País. Para Garman, a postura inicial do governo foi “desastrosa”, e as iniciativas, até aqui anunciadas, para socorrer empresas e a população de renda baixa, mais vulnerável ao coronavírus, são “tímidas”. Mas ainda há tempo para o governo tentar se recuperar, principalmente se ele passar a tomar medidas mais ambiciosas. “Os momentos mais dramáticos, do ponto de vista econômico e social, ainda estão por vir. Os maiores testes também”, diz Garman.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Além do coronavírus, há outras razões para a Eurasia passar a traçar perspectivas mais pessimistas para o Brasil?
Antes do choque do coronavírus, nós estávamos num equilíbrio. Tínhamos o presidente, com a postura de manter uma retórica contra o establishment político, valendo-se de sua bases na opínião pública. Ao mesmo tempo, lideranças no Congresso tinham chegado à conclusão de que manter uma agenda de reformas fiscais e econômicas eram de seu interesse eleitoral. Isso tinha a ver com um diagnóstico no Congresso, de que ao reduzir gastos obrigatórios, abre-se espaço para se apropriar de mais recursos destinados ao Executivo no Orçamento. Também havia um alinhamento inédito de governadores e líderes no Congresso para aprovar uma reforma tributária. Era um ambiente com tensões políticas, mas, paradoxalmente, com incentivos para que os atores políticos avançassem com as reformas. Com o choque do coronavírus, acho que vamos ter dois momentos políticos. Um será imediato e terá a ver como a classe política reagirá a essa crise. As primeiras reações do governo foram desastrosas. O presidente minimizou a crise, com medo da repercussão econômica em caso de que todos entrassem com medidas mais agressivas de contenção do vírus. A primeira reação da equipe econômica, por sua vez, foi a de querer acelerar reformas em tramitação no Congresso. Ou seja, o governo foi lento em tomar medidas para mitigar os efeitos sociais e econômicos. Mas, no curtíssimo prazo, ainda mantemos um certo otimismo.

Por quê?
Estamos enxergando um governo mais focado numa agenda de mitigar os efeitos sociais e econômicos para as empresas e a população. Eles estão ainda atrasados, mas passaram a fazer esse movimento. Estamos também enxergando no Congresso uma imensa boa vontade para aprovar com celeridade toda essa agenda. Nós devemos ter uma cooperação entre Executivo e Legislativo, porque a crise vai falar mais alto. Mas, depois, nós vamos ter um segundo estágio: passados os primeiros três, quatro meses, vamos viver as repercussões de uma economia que deverá estar no chão, com deslocamento social e econômico profundo e crescimento baixo não só este ano, mas também no próximo ano. A dinâmica política nesse segundo estágio nos preocupa.

Qual é o cenário que o sr. vislumbra?
Se, num primeiro momento, o tamanho da crise pode levar os atores políticos a trabalhar juntos, em uma segunda derivada, nós poderemos ter crescimento baixo; um presidente que reage ao seu enfraquecimento, polarizando-se, indo às suas bases e reforçando a retórica anti-establisment contra a classe política e uma classe política desesperada com suas chances de reeleição em 2022. Então, a coalizão reformista no Congresso também poderá se fracionar. Aquele cenário de que aprovar reformas era do próprio interesse dos parlamentares, com um presidente um pouco mais tranquilo da sua posição política e com um ciclo virtuoso de reformas e crescimento econômico se auto-alimentando, esse ciclo foi quebrado. E podemos ter agora um ciclo vicioso.

Qual pode ser a consequência política dos panelaços contra o presidente?
O presidente fez uma leitura muito equivocada de como deveria reagir à crise e deve pagar um custo político pela postura que adotou. Pode ser um preço alto. Em termos comparativos, estamos vendo que os governos que tratam a crise do coronavírus como uma guerra podem se beneficiar. Na Coréia do Sul, a aprovação do presidente Moon Jae-in está subindo por causa das medidas agressivas que estão sendo tomadas. Nos EUA, o presidente Donald Trump, num primeiro momento, estava minimizando a crise como apenas uma gripe mais feia, porque estava com medo que as pessoas entrassem em pânico e a economia parasse. Mas ele mudou, tomou medidas mais agressivas e o apoio a ele e a sua gestão da crise subiu de 38% para 47% de aprovação. Se o presidente Bolsonaro fizer uma mudança para tratar a crise como uma guerra que o País precisa enfrentar, ele pode até se recuperar. Alguns ministros estão adotando esse discurso. Fica a dúvida se o presidente vai adotar a mesma linha.

Ao mesmo tempo que faz alguns gestos de apaziguamento para trabalhar com os outros poderes no enfrentamento da crise, o presidente mantém hostilidade, por exemplo, em relação aos governadores. Acredita que essa atitude belicosa continuará?
Minha aposta é que ele vai mudar de postura, assim como o presidente Trump mudou, porque é muito difícil de sustentar essa postura num ambiente como esse. A crise vai atropelar. A estratégia de não gerar pânico para evitar a economia entrando em colapso é uma estratégia perdedora. Não tem como vencer. O presidente vai reconhecer isso. Mas ele não vai fazer uma reviravolta total. O cálculo do Palácio do Planalto é que Bolsonaro chegou à Presidência sem apoio de ninguém, sem dinheiro, sem apoio de partidos e lideranças e precisa alimentar essa narrativa contra o establishment, incluindo a imprensa, para se sustentar politicamente. Quando entra em dificuldades, o instinto do presidente é redobrar essa retórica que o levou ao Palácio do Planalto. Eu diria que ele nunca vai abandonar a retórica polarizante.

O apoio a essa retórica está minguante ou não?
Não sabemos ainda o preço que ele pagou pela minimização da crise, mas pode ser relativamente grande. O preço virá na frente. Num cenário de recessão, o presidente dificilmente manterá apoio. Enfraquecido politicamente, se ele insistir numa retórica anti-establishment, isso pode se tornar perigoso. Essa é a nossa preocupação. Nós fizemos um downgrade do longo prazo, porque a segunda derivada dessa crise nos preocupa muito mais do que o conflito institucional de curtíssimo prazo. Nesse primeiro momento, o Congresso vai cooperar. Até mesmo a oposição, dificilmente, vai levar adiante qualquer processo de impeachment.

A longo prazo, então, o sr. não descarta a possibilidade um conflito institucional mais sério?
Essa hipótese, com certeza, entrou no radar. É isso que queríamos sinalizar para os nossos clientes com um downgrade a longo prazo. O cenário político que virá depois da crise vai depender muito do que acontecerá nos próximos dois, três meses. Os momentos mais dramáticos, do ponto de vista econômico e social, ainda estão por vir. Os maiores testes, também. O governo está fazendo uma mudança, mas a avaliação de como ele passará por esses testes vai depender da agressividade das medidas que vão ser tomadas neste próximo mês.

Qual é a sua avaliação das medidas tomadas até aqui?
A variável que estamos mais olhando é a celeridade e a ambição das medidas para tentar manter empresas abertas, de um lado, e proteção para a camada social mais vulnerável. Nesse quesito, as primeiras iniciativas foram tímidas. Um voucher de R$ 200 para famílias que estão no cadastro único nos parece pouco. Acredito que a ajuda às famílias e às empresas vai aumentar muito daqui para a frente. A pergunta que fica é se o governo vai liderar esse processo ou não. Se o governo for tímido, o Congresso vai agir com propostas mais agressivas. Então, o risco de haver medidas não coordenadas ou que acarretam gastos permanentes na estrutura fiscal aumenta. O ideal é que o governo tome medidas muito agressivas, mas com uma estrutura de gastos temporária, de modo que a dinâmica fiscal possa ser equilibrada, passada a crise. Mas, para isso funcionar, eles precisam estruturar essas propostas e colocar uma bala muito forte. Eles estão agindo nessa direção, mas estão ainda atrás da curva.

A preocupação principal da equipe econômica tem sido até aqui com o equilíbrio fiscal. Acredita que ela terá ousadia para tomar medidas agressivas e no tamanho necessário?
A equipe econômica está atenta ao possível tamanho do deslocamento econômico e social. Eles estão procurando medidas de apoio a essa rede de proteção social e às empresas. Eles estão tomando o cuidado de que esses mecanismos sejam temporários e estão indo na direção correta. O perigo é que eles errem na dosagem. E que não façam um pacote de medidas grande o suficiente para apaziguar os ânimos no Congresso e assim evitar o risco de que os parlamentares ajam com medidas de alívio que não são temporárias e podem minar a estrutura fiscal ao longo do tempo. Na nossa leitura, eles poderiam ter até triplicado o valor de R$ 200 para as famílias no cadastro único. Assumiriam um ônus fiscal maior de curto prazo, mas colocariam em xeque a pressão do Congresso por medidas mais fortes.

Como as críticas de Eduardo Bolsonaro à China, maior parceiro comercial do Brasil, podem afetar o País, num momento de forte tensão política entre a China e os EUA, aliado preferencial do governo Bolsonaro?
O filho do presidente estava seguindo a linha da Casa Branca. A Casa Branca adotou a postura de declarar guerra ao coronavírus, que ela tem caracterizado como um “vírus chinês”. Para um público americano xenofóbico, isso pode até ser uma estratégia política bem-sucedida. Mas, para o Brasil, adotar uma estratégia como essa me parece um erro. Primeiro, não há sentimento anti-chinês na opinião pública brasileira. O Brasil também não está em condições de comprar esse tipo de briga. Os chineses têm poder de fogo para dar um sinal muito forte de que isso pode ter repercussões sérias para a relação bilateral entre China e Brasil. Não ocorre o mesmo na relação entre China e EUA. Os custos para o Brasil de assumir uma narrativa como essa são muito maiores e os benefícios também são muitos menores. Minha aposta é que o presidente Bolsonaro vai ter de fazer contenção de danos nesse episódio, porque a China está muito sensível à politização de um “vírus chinês” e as repercussões econômicas podem ser muito sérias.

Estadão