Músicos aproveitam isolamento para compor

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Foto: Reprodução/O Globo

Faltam o palco, a plateia e os aplausos. Sobram tempo e inspiração. Em isolamento por conta dos cuidados com a propagação do coronavírus, artistas estão compondo canções, terminando trechos que ficaram para trás, retomando parcerias do passado, parodiando músicas consagradas ou simplesmente comentando o momento. No fim, tudo vai parar em suas redes sociais.

Para além das lives, essas são formas que compositores encontraram de preencher os dias difíceis e de se conectar a um público também carente do velho agito da rua e de toda a alegria que emanava das aglomerações festivas da cidade.

Seja com a poesia de Moacyr Luz, com o humor que brota borbulhante para Luís Filipe de Lima, Edu Krieger e Elika Takimoto ou mesmo com o papo retíssimo do MC Tchelinho, a ordem dos novos dias é botar o sentimento para fora. E manter o otimismo em alta,à espera do carnaval que virá quando todos puderem sair de novo de suas casas, abraçar-se e celebrar a vida.

Com shows cancelados em quatro países e ainda sob o impacto inicial do confinamento, Moacyr Luz — comandante do Samba do Trabalhador das segundas no Andaraí e amante das esquinas e dos botequins — criou “Tão perto e tão longe”, na qual se queixa: “Tanto verde e tanto mar, não posso tocar / tanta mesa, tanto bar, não pode sentar.”

— A primeira semana foi para a alma da gente se acostumar, porque é um vazio muito grande. Eu sou um compositor muito envolvido com o Rio, e não poder ver o Rio angustia. Mas a música termina com esperança: ‘o coração não pode parar’ — diz Moa, que agora tem que se contentar com as transmissões ao vivo. — Falta a plateia. Os emojis são o novo aplauso.

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Tanto, Tanto

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Nessa nova e (até então) inimaginável realidade, Rodrigo Maranhão se impôs uma rotina: criar uma música por dia, a fim de “manter alguma sanidade”. Uma delas está sendo feita com o amigo sanfoneiro Marcelo Caldi, com quem nunca havia composto.

— É uma barra muito pesada. Outro dia eu fiz uma live com o Bangalafumenga [seu bloco de carnaval], e chorei feito criança — conta. — A gente não pode se entregar totalmente à tristeza. Li um texto que diz que os índios, mesmo dizimados, cantam e dançam, e, assim, continuam existindo. Sou privilegiado por poder fazer a quarentena, que tem o lado bom de conseguir terminar coisas inacabadas. É presunçoso achar que ajudo fazendo música, mas pessoas todo dia me agradecem.

O cantor, violonista, compositor, ator e pesquisador Alfredo Del-Penho encontrou inspiração numa interação musical on-line que teve com a cantora Mônica Salmaso e com o marido dela, o músico Teco Cardoso, ambos seus amigos. Do encontro virtual surgiu o samba de gafieira “Mônica e Teco — De afeto se sorri”, uma composição instrumental.

— Eu estava numa live, e a Mônica apareceu. Depois cantamos juntos, e eu fiquei o dia todo alegre com aquilo, com algo que surgiu pelo afeto — conta Alfredo, músico criado nas rodas de choro de Niterói. — As pessoas estão ávidas pelo encontro. Eu me vejo me reconectando com a essência do que me fez me apaixonar por música.

Dado à galhofa, o violonista Luís Filipe de Lima compôs a marchinha “Passa álcool na mão”, na qual diz que o melhor para sua saúde é mesmo é se isolar. “Se der mole, vou cantar para subir”, escreveu ele. A bem-humorada composição veio na sequência de “Cedae ou desce”, marcha sobre a crise da água da Cedae.

— Sou um compositor bissexto. Alguns amigos me mandaram ideias, trocadilhos. O (músico) Vinicius Lugon enviou o “passa álcool na mão”; o (produtor) Marcelo Cabanas, o “beba sua cerveja e não me covid”. É uma situação inédita, que vai marcar a vida de todo mundo: o ano em que a gente parou. Acho que ainda vão aparecer muitas músicas mais — aposta o músico.

Intérprete da Unidos do Viradouro, campeã do carnaval de 2020, Zé Paulo Sierra ajudou a trazer alívio aos espíritos de muita gente este ano: ele defendeu o samba “Viradouro de alma lavada” , no qual a escola contou a história das Ganhadeiras de Itapuã, grupo que desde 2004 divulga a cultura das mulheres escravizadas que trabalhavam nas margens da Lagoa de Abaeté e na praia de Itapuã.

Agora, em plena pandemia, Zé critica os “profetas da escuridão” e as divergências nas redes sociais:

— Está todo mundo no mesmo barco. Demos sorte que o carnaval se salvou. Era o momento de a gente estar fazendo festas, feijoadas, a comunidade da Viradouro confraternizando… Mas estou otimista.

O cancioneiro de Chico Buarque inspirou as paródias de “Apesar de você” (feita por Edu Krieger), “Ciranda da Bailarina” e “Meu caro amigo”, essas escritas pela professora e escritora Elika Takimoto e interpretadas pela filha, a estudante de teatro e instrumentista Nara Takimoto. As três são críticas à condução da crise da Covid-19 no país pelo presidente Jair Bolsonaro.

— Compus depois de o Bolsonaro desobedecer as recomendações e abraçar apoiadores — explica Krieger, que trabalha na TV Globo criando paródias para programas de humor. — Fiz essa como exercício. Nesse momento o humor é muito importante, traz um respiro. Me atrai bem mais uma paródia do que uma canção de protesto.

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Filha de um japonês com uma mineira que se casou pouco depois de ter sido expulsa de um convento — e que viralizou na internet em 2016, depois de ir à rede social para apregoar os predicados do filho que andava em busca de namorada —, Elika Takimoto é uma partidária da leveza. Neste momento em que a ameaça do coronavírus obriga ela e a filha Nara a viverem em casas separadas, a autora das paródias de Chico Buarque diz ter a receita ideal para combater o desalento.

— Rir joga as pessoas para cima. É preciso ocupar a cabeça e fazer piada — defende Elika. — Parei de contar os dias, porque estava quase fazendo risquinhos na parede, como uma presidiária.

Para alertar a população de favelas sobre os cuidados com a propagação da Covid-19, o MC Tchelinho, integrante do Heavy Baile, gravou o “Corona funk”. O papo é reto e cortante: “Corona tá na pista, eu vou ficar em casa”. A letra fala dos cuidados essenciais a se tomar na pandemia: lavagem das mãos, uso de álcool em gel…

— Fiz a letra em 16 minutos, e não pensei na repercussão. O objetivo é conscientizar. A informação não chega à favela, e é muito mais difícil fazer quarentena — alerta ele. — Queria que a música estivesse num comercial na televisão, para a tiazinha ver, a criança aprender. Se tivesse condições, eu botava um carro de som em cada comunidade para tocar.

O Globo