Realidade brasileira não permite seguir regras de distanciamento

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Foto: Gabriel Monteiro/Agência O Globo

“Distanciamento social” é o que o Ministério da Saúde e os governos estaduais vêm tentando fazer para reduzir a transmissão do coronavírus — suspendem-se eventos e atividades que juntem muita gente, isolam-se os casos confirmados e suspeitos e, assim, retarda-se a propagação.

Para pessoas como Luciene Braga, 39, no entanto, “distanciamento” e “isolamento” são virtualmente impossíveis. Ela vive com duas filhas em uma casa de um cômodo na Rocinha, Zona Sul do Rio.

— Moro numa casa muito pequena. Se alguém ficar doente, todos ficam. Não tem como fazer isolamento de um ou dois — afirma Luciene. — E aqui na Rocinha é muito difícil conseguir médico.

Seu lar fica em uma viela com tantas construções amontoadas que mal se vê o sol — o que transforma o ambiente em terreno fértil para o Sars-CoV-2. Para piorar, atendimento médico é escasso por lá.

Esse cenário, num contexto em que a Covid-19 já se espalha sem que seja possível rastrear sua origem — como acontece no Rio e em São Paulo —, preocupa não apenas a população, mas as autoridades e especialistas, começando pelo ministro da Saúde.

— O Rio é uma cidade de complicadíssimo cenário urbanístico. Temos uma quantidade enorme de pessoas em áreas de exclusão social, uma rede de saúde mais frágil. São Paulo tem mais musculatura, mas ambas sofrerão muito. A (capital) de Minas também — avaliou Luiz Henrique Mandetta, em reunião com parlamentares e ministros.

As redes estadual e municipal de Saúde do Rio sofreram com redução de leitos nos últimos anos. Os hospitais do estado tinham 3.771 em 2014 e, neste ano, 2.959. Já os da prefeitura caíram de 3.881, em 2017, para 3.527 neste ano.

A atenção básica também sofre. Levantamento da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores, de 2019, aponta que a capacidade de atendimento da rede de Saúde da Família no Rio caiu 17%. E a cobertura, que era de 70% da cidade, passou a 53%. A secretaria contesta os dados e alega que inaugurou nove unidades.

— A gente precisaria ter no Rio uma rede de atendimento médico mais estruturada — avalia Ligia Bahia, médica sanitarista e professora da UFRJ.

Cheia de becos e residências pequenas, sem entrada de luz solar ou circulação de ar, a favela da Rocinha conhece bem a proliferação de doenças respiratórias. Em 2019, segundo a Secretaria municipal de Saúde, a taxa de tuberculose foi de 201 casos por 100 mil habitantes da favela — cerca de cinco vezes mais que a média nacional. Em 2015, era de 375 por 100 mil habitantes.

— Se a Covid-19 se espalhar dentro de uma comunidade, vai ser muito rápido o contágio daquela população — avalia Ana Luísa Gomes, doutora em epidemiologia da Fiocruz.

Segundo o Censo de 2010, o dado mais recente disponível, 22% dos moradores da cidade (ou 1,5 milhão de pessoas) vivem em favelas — o dobro do percentual de São Paulo.

Especialistas em políticas sanitárias ainda apontam a umidade do clima e a grande circulação de turistas como desafios para a cidade do Rio.

— Por mais que haja diminuição de pessoas, a cidade ainda pode receber gente — afirma Ana Luísa.

No plano de contingência da Secretaria estadual de Saúde fluminense, há a previsão de três hospitais de campanha no caso de a doença atingir o nível mais alto de disseminação. O estado promete também mais 300 leitos para casos graves.

Já o município reservou 150 leitos para casos graves. A prefeitura determinou ainda que o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari, passe a ser a unidade de referência para tratamento do Covid-19.

São Paulo também se preocupa com o atendimento hospitalar. O maior desafio é a criação de leitos de UTI para atenção a pacientes graves. Na quinta, o estado solicitou verba de R$ 250 milhões para criação de novos espaços, compras de insumos e equipamentos, porém o valor que será enviado pelo governo federal, até agora, é de R$ 92 milhões.

A projeção do governo estadual era ter ao menos 1.400 novos leitos de UTI num cenário de epidemia. Ainda não se sabe se será possível alcançar essa disponibilidade com a verba até então conhecida.

— As recomendações individuais de higiene são fundamentais, mas o importante é a gente atentar para a necessidade urgente de o SUS de fato ter estrutura para atender os casos mais graves e evitar mortes — diz Antonio José Leal Costa, diretor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.

São Paulo tem outros complicadores: concentração de pessoas, empresas, negócios. Os mesmos motivos que fazem do estado a economia mais pujante do país são os que o tornam o caso mais delicado em meio à pandemia. Somam-se a isso fatores como poluição — que agrava problemas respiratórios — e temperaturas mais baixas, que favorecem a sobrevida do vírus e facilitam infecções.

— O número de pessoas que vive aqui favorece (a infecção), e por isso o estado precisa de um cuidado especial. Além disso, temos mais idosos, poluição e problemas respiratórios — explica o o secretário estadual de Saúde, José Henrique Germann.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE, de dezembro de 2019, São Paulo é o estado com o maior número de pessoas acima dos 60 anos: 17% dos seus quase 46 milhões de habitantes.

Para Ricardo Martins, membro da Comissão de Infecções Respiratórias e Micoses da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, grande parte dos idosos faz parte de um grupo que já tem doenças preexistentes, como as pulmonares obstrutivas crônicas.

— Esses devem redobrar os cuidados e seguir rigorosamente as indicações médicas. A pneumonia é a doença mais letal entre os mais velhos e pode vir através de qualquer virose, inclusive via influenza e coronavírus — alerta.

Já Minas Gerais, que tem dois casos confirmados, ambos fora de BH, tem 2.795 leitos de terapia intensiva e mais de 70% deles estão ocupados.

Até o momento, a prefeitura da capital já gastou cerca de R$ 1 milhão com ações de contenção do coronavírus. A cidade reservou dez leitos de UTI na Santa Casa e outros dez leitos clínicos no Hospital Metropolitano Doutor Célio de Castro.

Estados e municípios também contarão, em caso de epidemia, com a ajuda do governo federal. O Ministério da Saúde abriu licitação para a contratar até dois mil leitos de UTI “para atendimento a situação de emergência”.

O Globo