Remédio “vendido” por Bolsonaro pode ser fake

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Foto: Lauren Nicole/Getty Images

A cloroquina, um remédio utilizado originalmente para combater malária, lúpus e artrite e que mostrou bons resultados iniciais para o tratamento do novo coronavírus, tornou-se, além de uma esperança, mais um motivo de embate entre os que defendem uma quarentena total e os que clamam por um afrouxamento das regras. De um lado, os “quarentenistas” apontam que todos os estudos até agora ainda são muito limitados e que os resultados se restringem a casos específicos e graves, sendo completamente despropositado tratar a substância como qualquer coisa próxima de uma cura. De outro, os “vidanormalistas” dizem que os primeiros testes foram encorajadores e que isso já é suficiente para adotar o uso em larga escala, significando que uma solução para a pandemia desponta no horizonte. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra.

O Ministério da Saúde liberou 3,4 milhões de unidades do medicamento cloroquina na sexta-feira 27. Os médicos responsáveis pelo tratamento de doentes com o coronavírus terão de avaliar se devem ou não usar o remédio. Para o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, pacientes em estado avançado da doença talvez possam ser alvo da medicação, cujos benefícios ainda não foram comprovados cientificamente.

No Brasil, a cloroquina entrou em estudos para pacientes graves de Covid-19 no Hospital Israelita Albert Einstein e em hospitais da rede Prevent Senior e da Rede D’Or. Com o anúncio de Mandetta, outros hospitais tendem a seguir o mesmo caminho. O protocolo do Ministério da Saúde prevê cinco dias de tratamento.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), porém, fez ressalvas sobre novas terapias para o novo coronavírus sem extenso embasamento. Alguns poucos estudos internacionais indicaram melhora de pacientes com Covid-19 após a administração do remédio, principalmente na redução da carga de vírus em casos graves. Essa foi a conclusão de um levantamento na China — berço da epidemia que virou pandemia. Na França, outra pesquisa recente chegou a uma conclusão parecida. Registrou diminuição significativa da infecção em pacientes após seis dias de combinação da cloroquina com o antibiótico azitromicina. Outros estudos estão em andamento.

Não há contraindicação em testar insumos farmacêuticos ativos já conhecidos para outras doenças. Há vantagens, como fornecedores e processos seguros de fabricação já aprovados. A questão é comprovar — em dose, amostragem, efeitos colaterais — a validez da nova utilização.

Nos últimos dois séculos, a medicina foi aperfeiçoando um método com nome comprido e complicado, mas de entendimento fácil. Nos “estudos clínicos randomizados controlados”, grupos de pessoas são escolhidos de forma aleatória e um ou mais recebem uma medicação ou tratamento e os outros não. Ao fim, ficam claros os eventuais benefícios e também os efeitos indesejados. Essa é, de modo geral, uma das principais etapas para liberar novos medicamentos. Um dos precursores desse método foi o médico escocês James Lind, que no século XVIII descobriu que laranjas e limões curavam o escorbuto, a partir de dietas distintas para grupos de marinheiros com a doença.

Um dos temores de autoridades da saúde no Brasil e em várias partes do mundo é a automedicação. Como disse Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, o alvo são pacientes cuja mortalidade pode chegar a 49%, ressaltando que a cloroquina não é indicada para a prevenção e nem para quem tem sintomas leves da doença.

Os Estados Unidos já tiveram um exemplo do que o uso indiscriminado da cloroquina pode fazer. No dia 19 de março, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou ter “pressa” no uso da medicação. Uma vacina contra o novo coronavírus, que exige fases de testes e aprovação, não deverá sair em menos de um ano. Por isso, Trump pediu presteza ao FDA, a agência americana responsável pela liberação de medicamentos no país. “Não vai matar ninguém”, afirmou Trump sobre a cloroquina, defendendo tratar-se de um remédio poderoso, com resultados anteriores encorajadores. O presidente Jair Bolsonaro, contrário à política de isolamento total, também falou do remédio nas redes sociais e em seu pronunciamento. A tese não dita é que, se o medicamento funciona, as restrições podem ser levantadas, já que os pacientes graves poderiam ser tratados.

O médico epidemiologista Anthony Fauci, uma das maiores autoridades em doenças infecciosas nos Estados Unidos e presença então constante nas coletivas com Trump, ponderou e chamou as evidências sobre a cloroquina de ainda “pequenas e anedóticas”. Dias depois, um americano morreu intoxicado ao ingerir, com a mulher, fosfato de cloroquina na esperança de ambos ficarem livres do Covid-19 — usavam a substância para limpar aquários. A mulher foi internada em estado grave. Também houve casos de intoxicação em Lagos, maior cidade da Nigéria. Na Segunda Guerra Mundial, estudos sobre o uso da cloroquina para prevenir a dizimação de tropas americanas pela malária mostraram que mesmo pequenas doses poderiam ser extremamente tóxicas.

A ideia de cura ao alcance de uma prateleira também levou muita gente, inclusive no Brasil, a uma corrida às farmácias atrás de cloroquina. A procura foi tão grande que provocou o desabastecimento para os pacientes que de fato precisam do remédio. Nas redes sociais, espalharam-se posts de que a cloroquina conseguia “eliminar o coronavírus em até três dias”.

A procura fez a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) endurecer as regras e enquadrar a cloroquina como medicamento de controle especial — uma tentativa de garantir que as pessoas que precisam do medicamento para outras doenças não fiquem sem ele. E reafirmou, em nota: “O uso sem supervisão médica pode representar alto risco à saúde das pessoas”. Convulsões, arritmia cardíaca, erupções na pele, visão borrada e visão dupla estão entre possíveis problemas da intoxicação por cloroquina.

Outro temor é que, à medida que a epidemia avance, médicos e hospitais se vejam pressionados por familiares de pacientes com problemas de saúde leves provocados pelo novo coronavírus a prescrever o remédio. Até a semana passada, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) recomendava que nenhum medicamento fosse usado no tratamento de pacientes com o novo coronavírus sem evidência científica de eficácia e segurança. Mas admitiu que novos conhecimentos científicos poderiam mudar a recomendação e lembrou um dos princípios éticos da medicina: Primum non nocere, ou seja, primeiro não causar dano.