“Abortista”: o brasil minúsculo da intolerância será o legado de Bolsonaro

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Alan Santos/ Reprodução

O amontoado vertiginoso de palavras expelidas por Bolsonaro na sexta-feira nos deixou atônitos.

É como se a gente tivesse sido jogada em uma lava-roupas discursiva, fosse sacudida de lá pra cá com guinadas súbitas e, lutando pra não afogar na água suja que ia se formando, ainda tomasse umas pedradas vocabulares – “escrotizar”, “na sua inocência”, “chamava de gorda com 5 anos”, “24 mil pra gastar como quero”, “luto contra o istábish”, “meu assassino”, “meu 04 pegou metade do condomínio”, “mais importante que Marielle”.

Uma dessas pedradas, porém, não ganhou repercussão. Talvez porque a gente já esteja se acostumando a ela. Perigosamente se acostumando.

Ela veio quando Bolsonaro quis ilustrar que Moro traía sua confiança, pensava diferente demais. E o exemplo dado foi ele ter indicado uma “abortista, defensora de ideologia de gênero” para um cargo. Na sequência, se empolgou pra falar do belo trabalho de Weintraub na guerra ideológica contra inimigos ameaçadores (todas as pessoas com um cérebro pensante).

O “cargo” da indicada, uma cientista política, era no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Sequer do alto escalão. Sequer remunerado. Sequer com poder de decisão. Sequer correlacionado aos gabinetes odientos onde o foco é a doutrinação fanática em favor do patriarcado e da obscuridade. E, mesmo ali naquele Conselho, a indicação representou alta traição moral ao chefe, pouco importa a qualificação técnica da indicada.

O que se percebe nesse exemplo é o desejo de banimento, eliminação das pessoas não alinhadas ideologicamente com o Presidente da República. Desejo que ele já externou em outras ocasiões. Mas a naturalidade com que uma mulher é rotulada de “abortista” em cadeia nacional e com que isso é usado como bom exemplo da traição de um Ministro, assusta. Precisa assustar.

Uma hora, mais cedo ou mais tarde, esse governo vai passar. Mas o retrocesso civilizatório que ele trouxe, não. Em pouco mais de um ano, saímos de um embate, na sociedade, entre a pessoas contra e a favor da legalização do aborto, para o ponto em que o Presidente da República usa, da forma mais chula, o termo “abortista” para desqualificar moralmente uma cidadã. Inclusive para um trabalho sem relação com a questão de direitos reprodutivos das mulheres. E isso passa normalizado.

O que me preocupa, nessa sanha obscurantista, é que ela ganha força em muitos campos. Cresce, na sociedade, a legitimação para perseguição ideológica. Alastra-se o anti-intelectualismo. A misoginia e a homofobia viram padrão aceitável de conduta. No limite, a ideia é que os marcados com a letra escarlate percam empregos, sejam segregados, banidos, eliminados.

Tudo isso é sério demais. Os direitos fundamentais perdem conteúdo a cada dia, ao mesmo tempo em que o fundamentalismo ideológico e religioso se fortalece.

Na sexta, a pedrada “abortista” mostrou, mais uma vez, como é que se coloca “brasil acima de todos”, esse brasil minúsculo personificado no próprio presidente, que já disse que é, ele próprio, a Constituição.

É aterrorizante. O abandono do Estado Laico e a forma como isso reverbera nas relações sociais, deslegitimando escolhas morais, religiosas e políticas, serão o pior legado desse período.

*Roberta Maia Gresta é professora, doutora em Direito Político e autora do blog A fala

Facebook