Após Joice, Bolsonaro ameaça Moro

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Foto: Jorge William / Agência O Globo

O Supremo Tribunal Federal (STF) deu mais um cartão amarelo para Jair Bolsonaro. Isolado, o presidente foi obrigado a recuar e anulou a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal. Nos bastidores, Bolsonaro disse que não compraria mais uma briga com o Supremo depois que o ministro Alexandre de Moraes viu “desvio de finalidade”naquela indicação.

Moraes é o mesmo magistrado que investiga as manifestações do último dia 19, organizadas por apoiadores de Bolsonaro, em defesa da intervenção militar e do fechamento do Congresso e do STF. Está também sob a alçada de Moraes o inquérito das fake news para apurar ataques à Corte nas redes sociais.

Na prática, uma tempestade perfeita se forma na direção de Bolsonaro. As nuvens trazem crise política misturada à turbulência econômica, além de uma grave pandemia de coronavírus no meio do caminho. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, afirmou Bolsonaro nesta terça-feira, 28, ao responder a perguntas de repórteres sobre o fato de o Brasil ter ultrapassado a China em número de mortes pela covid-19.

Desde que o ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro deixou o Ministério da Justiça, no dia 24, acusando Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal, tudo parece levar ao agravamento da sucessão de crises. Agora, o problema não é apenas “cortar o combustível do Posto Ipiranga”, como disse o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, em entrevista à Coluna Direto da Fonte, de Sonia Racy, numa referência a Paulo Guedes, o titular da Economia que carrega esse apelido.

O mais grave é que o próprio Bolsonaro, insuflado pela ala ideológica do governo, joga gasolina na crise. Apesar de desconfiar de tudo e de todos, espalhando até boatos para aliados, com o intuito de identificar quem “vaza” notícias no Planalto, ele não enxerga uma tempestade de grandes proporções no horizonte. Mas vê conspiração. “É muita trovoada para pouca chuva”, resumiu.

A troca na Polícia Federal foi a gota d’água para o pedido de demissão de Moro. E, de lá para cá, cada dia vivido pelo Planalto – que se aproximou do Centrão para formar uma base de sustentação no Congresso e tenta barrar eventual processo de impeachment – tem sido sido uma agonia.

O delegado Ramagem, nome que havia sido escolhido para comandar a PF, está na corporação desde 2005 e era diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) até ontem. É homem da estrita confiança do presidente e amigo de seus filhos.

A aproximação com Bolsonaro começou no segundo turno da campanha presidencial, em 2018, quando ele foi escalado para coordenar a segurança do então candidato do PSL. “Passou a ser um amigo”, contou o presidente. “Tomava café junto, com leite condensado no pão”.

Se a troca de Moro por André Mendonça no Ministério da Justiça foi bem recebida no Supremo, o mesmo nunca se pôde dizer sobre a substituição de Maurício Valeixo na PF. Bolsonaro já admitiu, mais uma vez, que sempre cobrou de Moro relatórios diários de inteligência, sob o argumento de que precisa de informações para administrar o País. Disse, ainda, que a Abin lhe repassava esses dados.

“Não é justo um presidente viver numa situação dessas. Eu não quero saber de inquérito de ninguém. Não estou sendo investigado”, disse ele. Na segunda-feira, 27, porém, o ministro do Supremo Celso de Mello autorizou abertura de inquérito para investigar denúncias feitas por Moro de que Bolsonaro tenta intervir nas apurações da PF.

Nessa guerra, mais um vídeo legendado, para gabinete do ódio nenhum botar defeito, está prestes a sair do forno. É que Bolsonaro prometeu divulgar a gravação da última reunião ministerial da qual Moro participou, no último dia 14. Na ocasião, o presidente cobrou que o ex-juiz da Lava Jato se posicionasse publicamente sobre prisões, consideradas por ele como “ilegais”, de pessoas que furaram a quarentena imposta por prefeitos e governadores para evitar a propagação do novo coronavírus. O clima foi tenso.

“Nossa reunião é filmada e fica no cofre lá o chip”, comentou Bolsonaro, dizendo ter pedido autorização dos outros ministros para divulgar a cena. “Mandei legendar e vou divulgar. Tirem as conclusões de como eu converso com os ministros”.

Ao se dirigir a apoiadores que rezavam por ele na portaria do Palácio da Alvorada, na noite desta terça, 28, o presidente calibrou o discurso de campanha. “Eu sou uma das pessoas que mais apanham. Dói no coração”, reclamou Bolsonaro.

Antes de se despedir, pediu que os jornalistas se apressassem nas perguntas. “Se não a mulher me cobra aí. E eu vou dormir na casa do cachorro”, afirmou ele, rindo. Ainda ontem, no mesmo dia em que o Brasil ultrapassou a China em número de mortos pela covid-19 – foram 5.017, enquanto os chineses registraram 4.637 – a Secretaria de Comunicação da Presidência postou mensagem sobre “números amplamente positivos” do combate à doença no Placar da Vida. Com um solavanco atrás do outro na República, ninguém se arrisca a prever as cenas do próximo capítulo.

Estadão