Barroso acha impossível golpe militar hoje no Brasil

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Foto: Cristiano Mariz

Assim como vem ocorrendo com uma parcela significativa dos brasileiros, a rotina do ministro Luís Roberto Barroso, 62 anos, mudou radicalmente nas últimas semanas. Cioso de sua saúde, ele segue à risca as orientações das autoridades sanitárias e tem trabalhado de casa, entre sessões virtuais do Supremo Tribunal Federal (STF), a leitura de processos e videoconferências. Em meio a sua quarentena, porém, observou atentamente as manifestações da semana passada de grupos que defendem a volta da ditadura militar. Cenas que merecem repúdio, segundo ele, mas que não representam risco à solidez do regime democrático. Na opinião de Barroso, o Congresso, o Judiciário e a imprensa estão suficientemente maduros para servir como travas contra eventuais arroubos autoritários. Nesta entrevista a VEJA, Barroso admite que o adiamento das eleições municipais é uma possibilidade real (ele acaba de ser eleito presidente do Tribunal Superior Eleitoral), fala sobre críticas que alguns grupos fazem ao STF e sobre a situação do médium João de Deus, acusado de abusar de dezenas de mulheres e de quem recebeu um tratamento espiritual contra um câncer.

Ministro, diante da presença do presidente Jair Bolsonaro em uma manifestação pró-AI-5 e pela volta da ditadura, existe alguma ameaça à democracia brasileira? Acho que não. As instituições estão funcionando bem. Apesar de alguns protestos e reações contrárias aqui e ali, o Legislativo e o Judiciário funcionam com independência e altivez. A imprensa também é livre e tem sido duramente crítica. Não vejo nenhum sinal preocupante em relação à democracia. Mais do que isso, vejo nas Forças Armadas o desempenho de um papel exemplar. Nos últimos trinta anos, se existe um lugar de onde não veio notícia ruim foi das Forças Armadas. O germe do golpe não existe mais no Brasil.

Não se deve então dar importância a essas manifestações? Esse episódio acendeu uma luz amarela no coração e na mente de todos os democratas — e a reação foi imediata e vigorosa. Eu mesmo, que tenho por princípio não me pronunciar sobre o fato político do dia, nessa situação achei que era necessário um gesto de defesa das instituições, da Constituição e da democracia. Mas o que esse episódio revelou, como outros de invocação do AI-5, foi uma sociedade muito vigorosa na defesa da democracia. Vieram protestos da Câmara, do Senado, do Supremo, da mídia, dos partidos políticos, num espectro que vai da esquerda à direita.

O presidente da República ultrapassa limites legais ao participar de atos assim? Neste momento, esse tipo de indagação deve ser mais bem respondida por comentaristas políticos. É importante sermos capazes de separar varejo e retórica política do que seja verdadeiramente uma ameaça institucional. O STF não participa desse varejo. Não é órgão de consulta nem de debates.

Essas manifestações, aliás, também são contra o Supremo. Por que o tribunal vem sendo tão criticado nos últimos tempos? Quem quer que exerça poder em uma democracia vira vidraça em alguma medida, e é bom que seja assim. Na questão do enfrentamento da corrupção, houve uma demanda da sociedade por integridade. Esperava-se por uma reação mais vigorosa do Supremo nos casos da Lava-Jato, como se esboçou no mensalão. O exercício da competência criminal trouxe um desgaste para o STF, como as idas e vindas quanto à execução da pena depois da condenação em segundo grau. Não obstante isso, o Brasil mudou. Acabamos com o fetiche do corrupto rico, poderoso e intocável. A sociedade brasileira deixou de aceitar o inaceitável. Embora eu seja totalmente contra agressões e insultos, a verdade é que a cada dia fica mais difícil para um vigarista sair à rua. Estamos derrotando a naturalização das coisas erradas. Isso é um grande avanço.

Além das idas e vindas, os ministros são criticados por falar muito fora dos autos e pela insegurança jurídica que algumas decisões provisórias provocam. Acho que o tribunal tem um problema de monocratização. O STF tem onze pessoas com trajetórias, ideias e visões próprias. Minha proposta é que todas as decisões individuais sejam colocadas no plenário virtual para a ratificação ou não pelos demais ministros. Isso evitaria idas e vindas. Outro problema importante é o volume de ações. Com 70 000 processos por ano não é possível julgar colegiadamente. Juiz também não tem de falar fora dos autos sobre processos em curso. Ninguém faz a menor ideia das minhas preferências políticas. Ninguém precisa nem vai saber se eu votei em A, se votei em B ou se votei em branco. Agora, sobre questões institucionais acerca do funcionamento do Supremo ou que envolvam reforma política ou prorrogação de mandatos, por serem debates institucionais, acho que os ministros podem e devem participar.

Como o senhor se classificaria politicamente? Um juiz não é nem de esquerda nem de direita. A lógica de um juiz é o certo ou o errado, o legítimo ou o ilegítimo. Venho de uma geração que acreditava no Estado como protagonista das transformações sociais. Acho que o Estado deve ser um regulador eficiente e seu grande papel é redistribuir riquezas e oportunidades com tributação justa, educação básica de alta qualidade e um sistema de saúde capaz de atender às necessidades essenciais da população. Eu me consideraria hoje um liberal progressista. É claro que é perfeitamente legítimo as pessoas serem conservadoras. Sou contrário é à prática da intolerância e do ódio.

Como o senhor está lidando com a quarentena? Tenho trabalhado de casa, angustiado. No meu caso, escrever votos, estudar processos e participar de videoconferências resolve a minha vida. Não sou impactado pelo isolamento, mas sou solidário com as pessoas que precisam ir para a rua para obter seu ganha-pão. Ouço o que dizem as autoridades sanitárias e presto atenção na experiência dos outros países. Até aqui o isolamento tem sido o remédio mais eficaz contra a propagação do vírus. Esta crise pode nos ensinar algumas coisas.

Por exemplo? Tenho a característica de tentar olhar para as coisas sempre pelo que elas possam ter de construtivo. Creio que o coronavírus pode ter sido uma importante freada de arrumação para a humanidade. Constatamos algumas coisas importantes: descobrimos nossa própria vulnerabilidade e o fato de não sermos super-­homens nem supermulheres. Também reavivamos a percepção global e brasileira da desigualdade abissal que existe e, por fim, percebemos que há uma falta de liderança mundial. Não dá para ninguém ser líder mundial dizendo “eu primeiro”.

Como presidente do TSE, como o senhor vê as declarações do presidente de que as últimas eleições foram fraudadas? Lido com fatos e provas. Nunca se apresentou nenhum caso constatado ou comprovado. Sob esse sistema foram reeleitos o presidente Fernando Henrique, o presidente Lula, a presidente Dilma e eleito o presidente Bolsonaro. Alguém acha que o resultado não correspondeu à vontade efetiva do eleitorado? Na verdade, o voto eletrônico acabou com as fraudes no Brasil. Voltar para o voto impresso a esta altura, como querem alguns, é mais ou menos como cancelar a assinatura da Netflix e comprar um videocassete. O futuro é votar do celular, se não inventarem algo mais moderno daqui a pouco.

Há propostas no Congresso para impor uma quarentena de até seis anos aos magistrados que queiram se candidatar a cargo eletivo. O que o senhor acha disso? Juízes não devem utilizar seu cargo com propósitos eleitorais ou como um trampolim para a política. Vejo a quarentena como necessária, embora seja de opinião que esse prazo é grande demais. Os críticos desse projeto afirmam que ele foi feito para inviabilizar uma eventual candidatura do ex-juiz Sergio Moro. Isso é puramente especulativo, e não cabe a mim opinar. Mas em tese, em direito, quase tudo o que é feito para produzir efeitos retroativos é problemático. Não falo de casos específicos. Sou professor há quarenta anos e, numa democracia, política é gênero de primeira necessidade. Devemos estimular a política de qualidade feita com idealismo e com espírito público. É uma das atividades mais nobres que alguém pode ter na vida. Precisamos atrair gente nova e idealista.

Por que isso não acontece? Custo e estigma. É preciso baixar o custo e revalorizar a política. Sabe onde os jovens idealistas foram parar? No Judiciário, no Ministério Público, na Polícia Federal. E muitas vezes eles querem mudar o mundo a partir de lá. Embora seja possível fazer algumas coisas pela judicialização, as grandes transformações dependem mesmo é da política. Uma coisa positiva que aconteceu no Brasil é a certa ascensão do Poder Legislativo na elaboração da agenda, um pouco como as democracias devem ser.

Adiar as eleições municipais por causa da pandemia é uma hipótese possível a esta altura? Acho que ainda é cedo para decidir sobre o adiamento, mas preciso reconhecer que hoje essa é uma possibilidade real. Junho será o momento de definição. A minha posição é tentar evitar ao máximo o adiamento. Mas, se não der, teremos de prorrogar o mandato dos prefeitos e vereadores por um prazo mínimo.

Como advogado, o senhor defendeu o italiano Cesare Battisti. Surpreendeu-se quando ele confessou os assassinatos que havia negado por toda a vida? Ele sempre me disse que era inocente. O advogado não se confunde com o cliente. Não usei, porque não precisei, o argumento de negativa de autoria no julgamento. Se eu acreditava em sua inocência? Não precisei desse elemento, não era relevante para mim. O mais relevante era que tinha havido um embate político, uma luta armada. Se me perguntarem, não sou a favor da luta armada, não sou a favor da violência e não acho que ninguém tem o direito de matar ninguém.

O senhor foi paciente do médium João de Deus. Como lida com as acusações de que ele era um abusador em série? Em 2012 tive um adenocarcinoma de esôfago com um prognóstico bem ruim. Um amigo muito querido meu, que era ministro do Supremo, trouxe o João de Deus a minha casa. Ele fez uma cirurgia espiritual, e eu o visitei diversas vezes em Abadiânia. Sempre quis bem ao João de Deus e fiquei devastado com o que aconteceu. Para mim, isso era impensável. Acho que as pessoas a quem ele fez bem devem ser agradecidas, e as pessoas a quem ele tenha feito mal têm direito a justiça.

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