Bolsonaristas divulgam vídeo falso sobre abertura do comércio

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Foto: Reprodução

O vídeo que divulga a “Semana Nacional de Reabertura do Comércio” e a “Semana Bolsonaro” tem informações enganosas sobre uma mobilização nacional para a retomada das atividades comerciais no país. Não existe um movimento organizado para a abertura do comércio ou a realização de promoções nesta semana.

No último domingo, 5 de abril, um grupo denominado “Soberanistas” postou no Youtube um vídeo anunciando a reabertura do comércio com promoções a partir do dia 7 de abril, chamada de “Bolsonaro Week”. A mensagem propunha que todos os estabelecimentos abrissem as portas e que consumidores saíssem às ruas para fazer compras, apesar da política de isolamento social que vem sendo adotada no país como estratégia de combate à pandemia de covid-19 – doença causada pelo novo coronavírus.

O Comprova apurou e não encontrou indícios de qualquer organização nacional de empresários e comerciantes ou a articulação de uma “Black Week”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) afirmam que o isolamento social é uma medida essencial para o combate à pandemia do coronavírus durante o estágio de transmissão comunitária da doença — fase que o país atingiu em 20 de março.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Para realizar esta checagem, o Comprova usou a base de dados Brasil.io, um repositório de dados públicos, e fez buscas em redes sociais e no site da Receita Federal.

Também foram consultadas notas técnicas da Sociedade Brasileira de Infectologia, e transcrições de entrevistas concedidas por representantes da OMS, sobre a covid-19, e ouvido um porta-voz da Ordem dos Advogados do Brasil. Foram ouvidas a Confederação Nacional do Comércio (CNC) e uma das fundadoras do grupo Soberanistas, que protagoniza o vídeo em questão.

O isolamento físico ou social é, atualmente, uma das principais medidas defendidas pelas autoridades mundiais de saúde. No dia 20 de março, em uma entrevista coletiva sobre o cenário do coronavírus, Michael Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), respondeu diretamente a uma pergunta sobre as medidas adotadas no Brasil, e reafirmou a importância do isolamento.

“Quando a doença chega a um determinado estágio, principalmente na transmissão comunitária, não é mais possível identificar todos os casos ou todos os contatos [com doentes] que você pode mover e separar do restante das pessoas”, explica. Segundo o médico, “você cria distância física entre todos, porque não sabe exatamente quem pode estar contaminado pelo vírus”. [tradução livre]

As orientações da Sociedade Brasileira de Infectologia também são no mesmo sentido. Em uma das notas técnicas publicadas, a entidade criticou um pronunciamento do presidente que falava em afrouxamento de medidas restritivas, e afirmou que “do ponto de vista científico-epidemiológico, o distanciamento social é fundamental para conter a disseminação do novo coronavírus”.

“Quando a covid-19 chega à fase de franca disseminação comunitária, a maior restrição social, com fechamento do comércio e da indústria não essencial, além de não permitir aglomerações humanas, se impõe. Por isso, ela está sendo tomada em países europeus desenvolvidos e nos Estados Unidos da América”, assinou o presidente da entidade, Clóvis Arns da Cunha.

As medidas de distanciamento social já foram inclusive defendidas em um documento técnico do Centro de Estudos Estratégicos do Exército, que foi posteriormente apagado do site oficial da instituição.

O que é o grupo ‘Soberanistas’?

Na seção de perguntas do blog oficial do movimento, o grupo apresenta-se como um think tank que trabalha a partir da criação de células locais, no ambiente digital, promovendo o “protagonismo histórico, político e cultural, via integração da população total em torno de valores chaves do conservadorismo.

Na página dos “Soberanistas” no Facebook, o grupo também se identifica como conservador e reafirma sua “lealdade” ao presidente Jair Bolsonaro, além de afirmar ter “o professor Olavo de Carvalho como referência”.

Apesar das frequentes indicações de apoio e concordância, por parte do grupo, às ideias de Olavo de Carvalho, o guru bolsonarista negou qualquer relação com o movimento.

O Comprova também entrou em contato com o grupo por mensagem, no Facebook, e nos foi encaminhado um número de telefone identificado como de um dos responsáveis pelo grupo. O número pertence a Valquíria Lopes, que confirmou ser a pessoa que aparece no vÍdeo que divulga a “Semana Bolsonaro”.

A mulher que aparece no vídeo dos “Soberanistas” é Valquíria Lopes, fundadora e coordenadora nacional do grupo.

Em seu perfil pessoal no Facebook, ela tem vários posts e fotos em apoio a Bolsonaro, e uma foto de Olavo de Carvalho como figura de capa.

Valquíria Lopes concordou em conceder uma entrevista, pelo WhatsApp, sobre o movimento e o vídeo que viralizou. Ela diz que em todo o Brasil muitas pessoas apoiam a ideia de reabertura do comércio. “Empresários e trabalhadores estão angustiados e com medo de perderem tudo que construíram ao longo da vida”, afirmou.

Val Lopes, como ela se apresenta no vídeo verificado pelo Comprova, é de Ourinhos, no interior de São Paulo, cidade que adotou restrições ao setor de comércio e serviços por causa da covid-19. Ela, que já foi empresária e hoje diz trabalhar como autônoma, avalia que a proposta da Bolsonaro Week foi uma tentativa de evitar o colapso econômico no país durante o período de pandemia.

A mulher aparece em todos os vídeos publicados no blog dos Soberanistas e em vários outros disponíveis no canal do grupo no YouTube.

Nesta quinta-feira, Val Lopes publicou novo vídeo nas redes sociais, afirmando estar sendo processada pelo Ministério Público do Ceará por conta do vídeo da Bolsonaro Week. Ela mostra, ao fundo, uma delegacia da Polícia Civil onde diz ter ido prestar depoimento. Val teria sido denunciada pelo art 267 do Código Penal que se refere a “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. Nesse mesmo vídeo ela afirma que não retirará o conteúdo do Youtube.

O vídeo publicado pelos Soberanistas fala em “reabertura do comércio” e retomada de serviços, além da realização de promoções em todo o país, aos moldes de uma “Black Week”.

O Comprova entrou em contato com a Confederação Nacional do Comércio (CNC), para saber se existia algum tipo de mobilização nacional para o retorno das atividades comerciais em todo o país, ou para a realização conjunta de promoções no setor. Em nota, a CNC disse que não sabia de qualquer movimento organizado neste sentido. A entidade afirma que tem acompanhado a “evolução do cenário de pandemia do coronavírus e as recomendações das autoridades competentes em relação às medidas de distanciamento social e a forma mais adequada de volta à normalidade, para que possa orientar da melhor forma os empresários do setor.”

No vídeo, Val Lopes fala em retomada das atividades em nome do “direito de ir e vir”, do “direito de comprar” e do “direito de se sustentar”. O Comprova consultou a OAB para saber mais sobre a manutenção de direitos individuais, como os defendidos pelos “Soberanistas”, em um cenário de pandemia como o atual.

Para o Presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, “não há o direito individual de cometer crimes.” Segundo Coêlho, “o que o movimento defende é o cometimento de crime contra a saúde pública e a exposição a moléstia contagiosa.” “O caso é de polícia”, completou.

Junto com o vídeo, o grupo os soberanistas publicou, no Twitter, uma imagem com um “Protocolo Inteligente Pós Isolamento”. Na postagem, é sugerido, entre outros pontos, que “quem puder ficar em casa, fique”, que todos cuidem da proteção individual e que grupos de risco fiquem isolados. Esta última sugestão faz referência à ideia de “isolamento vertical”, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro. A prática já foi analisada por vários especialistas, que afirmam que ela não é uma solução eficaz para a pandemia da covid-19.

Sobre a utilização do nome do Presidente Jair Bolsonaro para nomear a iniciativa, o Comprova procurou o Palácio do Planalto, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto.

No YouTube, o vídeo no canal dos Soberanistas teve, até a tarde desta quinta-feira, 09/04, 124 mil visualizações, com 34 mil reações negativas e 746 positivas.

O vídeo recebeu muitas críticas também nas redes sociais. No Twitter, quase todas as manifestações eram de repúdio à iniciativa de retorno do comércio em um tipo de “Black Friday” fora de época. O vídeo foi retirado após denúncias.

No Facebook do grupo Soberanistas o vídeo também não está mais disponível desde o meio da tarde desta quarta-feira (8). Não é possível dizer se ele foi apagado propositalmente ou retirado do ar.

Outras pessoas, no entanto, republicaram o mesmo conteúdo em suas redes sociais. Um dos vídeos foi, inclusive, compartilhado pelo deputado federal Alexandre Frota (SP), que também criticou a iniciativa.

A “Bolsonaro Week” foi destaque ainda no site da Fórum com o título “Vídeo: Radicais de Olavo de Carvalho, ‘Soberanistas’ lançam “Black Week Bolsonaro” para reabrir comércio”.

Após publicação da matéria o filósofo e guru bolsonarista Olavo de Carvalho compartilhou o conteúdo afirmando não ter ligação com o grupo.

No dia 7 de abril, a mulher que aparece no conteúdo que trata da Bolsonaro Week, Val Lopes, ironiza as críticas que recebeu, publicou um novo vídeo, no Twitter, “agradecendo” o “apoio” de quem chama de “esquerdistas” e “idiotas úteis”.

Sobre as reações que o conteúdo recebeu nas redes sociais Val Lopes disse que houveram, sim, muitas manifestações de apoio e que a repercussão negativa veio de “agressões e ofensas por parte de pessoas que formam grupos organizados da esquerda radical. Essas pessoas são fanáticas, não são pessoas racionais e querem o pior para o país, apenas estão instrumentalizando politicamente a pandemia.”

Estadão