Brasil atravessará pandemia em crise política

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Foto: AFP / NELSON ALMEIDA

Prever o futuro não é tarefa realizável. Preparar-se para as mudanças, por outro lado, é atividade possível e recomendável. Principalmente na adversidade. E diante da pandemia, que está mudando as relações sociais e econômicas, especialistas projetam possíveis cenários para que governo e sociedade construam caminhos para sobreviver ao trauma. Uns são mais pessimistas do que outros. Existe a bifurcação entre sociedades mais e menos fraternas. Mas prevalece, para muitos estudiosos, o reposicionamento da China na economia global, em detrimento dos Estados Unidos. Do outro lado da tempestade, o paciente chamado Brasil, para utilizar as palavras do ministro Luiz Henrique Mandetta, encontrará um mundo mais fechado e menos democrático após se recuperar da Covid-19.

A revista americana bimestral Foreign Policy publicou um conjunto de artigos, com vários especialistas, intitulado “Como o mundo se parecerá após a pandemia de coronavírus”. Nele, o professor de relações internacionais de Harvard, Stephen M. Walt, afirma que a pandemia criará um mundo “menos aberto, menos próspero e menos livre”. “Não precisava ser desse jeito, mas a combinação de um vírus mortal, falta de planejamento e lideranças incompetentes colocou a humanidade em um caminho preocupante”, afirma.

Diretor e chefe-executivo da Chatham House, organização britânica de estudo e análise de política internacional, Robin Niblett, por sua vez, diz ser pouco provável que o mundo retorne ao conceito de globalização de benefícios mútuos construídos no início do século XXI. “Sem incentivos para proteger o partilhamento de ganhos de uma economia global integrada, a arquitetura da governança econômica globalizada estabelecida no século XX vai rapidamente atrofiar. Será necessária uma grande autodisciplina de líderes políticos para sustentar a cooperação internacional e não retrair em uma competição geopolítica aberta”, alerta.

A disputa internacional por ventiladores e equipamentos de proteção individual para médicos e enfermeiros é um peso a mais no lado pessimista da balança. Na corrida pelos produtos, ganha quem paga mais e manda seus aviões buscarem os produtos, como fizeram os Estados Unidos com a China. No Brasil, especialistas em relações internacionais, cientistas sociais, analistas e experts políticos também alertam para as bifurcações na estrada.

As luzes amarelas sinalizam à sociedade e às lideranças políticas os riscos e os problemas pela frente, em nome de um país que saia maior da crise. O primeiro desafio, no entanto, será superar a crise dentro da crise. Com postura negacionista, o presidenrte Jair Bolsonaro é um obstáculo, pois se isola e dissemina desinformação.

O analista político Melillo Dinis destaca o aspecto político-econômico da crise no Brasil. Segundo ele, havia a tentativa do governo Bolsonaro de instituir uma política extremanente liberal, com redução de direitos sociais e “Estado ínfimo”, que “dava voos de galinha” e já sofria solavancos internos e externos. Isso acabou desmontado pela chegada do vírus.

O analista fala sobre a possibilidade de uma radicalização do liberalismo econômico aprofundar um “apartheid social”, com 10% da população vivendo dentro dos marcos sociais e políticos existentes, e os 90% mais pobres, incluindo a classe média, vivendo na exclusão e na miséria.

“O cenário mais provável é de um país ainda mais conflagrado, todo mundo se acusando. Bolsonaro acusando governadores, governadores dizendo que o presidente demorou a agir. Uma economia pífia, com dívida pública multiplicada por muitos fatores, e que vai transformar o país em um estado mais desestruturado, sem rumo que não seja o conflito e a desagregação social”, avaliou. O segundo cenário é de a crise possibilitar a reconstrução de um pacto social com fortalecimento das instituições democráticas.

Nesse mundo pós-coronavírus, não haveria espaço para populistas de qualquer espectro político. “Vamos precisar de um pacto social pela defesa do Brasil democrático com sindicatos, organizações da sociedade civil, partidos políticos, poderes, imprensa. E com uma economia mais solidária e menos consumista”, pondera o especialista. “Na minha visão, a crise é profunda. O pós será gravíssimo se construirmos pela gravidade, ou um país mais justo, se encontrarmos o caminho certo. Eu torço pelo segundo cenário, mas acredito que haja mais probabilidade do primeiro”, lastimou.

O cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Geraldo Tadeu tem uma visão ainda mais pessimista: o isolamento de Bolsonaro, contrário ao Congresso, a ministros e governadores, o crescimento do Poder Legislativo como protagonista e o entendimento que a gravidade do cenário supera a briga entre direita e esquerda. Apesar disso, o especialista admite que, nos últimos tempos, a polarização se inflamou.

“Podemos ver, de um lado, um movimento cada vez mais autoritário, porém mais localizado; e de outro, uma reconfiguração dos institucionalistas, democratas, que têm uma visão mais institucional da vida política. Isso tem se configurado também em alianças que deslocam o eixo da governança”, afirma.

Para Geraldo Tadeu, a reconfiguração é o meio republicano encontrado para manter a governança do Brasil, a despeito das crises e confusões que o presidente possa deflagrar. “É uma maneira de encontrar uma solução institucional, nos limites da legalidade, para um problema que é muito sério: um presidente que se comporta de maneira estranha aos deveres do cargo. Victor Orban, presidente da Hungria, líder do movimento ultradireitista no mundo, é o exemplo mais claro do radicalismo ao obter poderes quase absolutos em meio à atual crise. Esse é um comportamento personalista e irresponsável. Os atuais movimentos são uma forma de isolar o presidente, torná-lo menos efetivo”, salienta.

Seguindo a lógica da divisão da sociedade pós-coronavírus em um grupo menor e detentor do poder financeiro e um grupo majoritário mais pobre, porém ativo, o coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Robson Sávio Reis Souza, diz enxergar uma realidade dramática para além da crise. Ele destaca que, a despeito de serem minoria, os detentores do poder financeiro também são detentores do poder político.

“Não podemos desconhecer que, depois da Segunda Guerra Mundial para cá, tirando as décadas de 1950 e 1960, a tendência do poder econômico sempre foi suplantar a política e dar as cartas. E a profunda crise atual afetou fundamentalmente esse grupo poderosíssimo”, destaca.

“Temos forças que, a partir de uma visão pessoal de mundo, tentarão se colocar em um momento pós-caos. Uma delas tem a ver com movimentos sociais, comunitário, menos vocalizado na mídia, mas muito potente. Mas não posso desconhecer que, do ponto de vista da grande engenharia global, o grupo do poder econômico, associado ao poder bélico e militar, está ferido e vai lutar para se sobrepor. É um cenário preocupante, com relações de força desiguais. Pois o poder está concentrado nas mãos de grupos com domínio econômico bélico e político”, alerta o cientista social.

Robson Sávio lembra, ainda, que figuras políticas como Bolsonaro e Donald Trump aproveitam momentos como esse para ter ganho político e que, mesmo no caso do presidente americano, a mudança de postura em relação ao coronavírus tem mais relação com as eleições do que com o bom senso.

“Isso é claro no caso de Bolsonaro, que atua no esgarçamento das instituições democráticas. Ele sabe que vai ser caótico e tentará sair ileso. Vai dizer que agiram daquela forma, e não do jeito que ele propôs. Não podemos desprezar as políticas de ultradireita”, analisa.

Correio Braziliense