China quer ser primeiro país a sair da quarentena

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Foto: Jason Lee/Reuters

O fim do confinamento em Wuhan, na China, o marco zero da pandemia do novo coronavírus, foi feito com pompa e circunstância. Por ordem do governo, na última quarta-feira, 8, os arranha-céus e as pontes da cidade foram cobertos por iluminação sincronizada, um espetáculo a ser visto ao ar livre. Além da tão aguardada volta à rotina, o encerramento de onze semanas de quarentena devolveu à capital da província de Hubei sua conexão com o mundo. Já nas primeiras horas, 55 000 moradores reservaram assento nos trens de alta velocidade que cortam a China. O alívio com relação à metrópole, onde a Covid-19 fez 3 339 vítimas, três quartos das mortes no país, foi acompanhado de uma sequência de boas notícias. Um dia antes, a China declarou que pela primeira vez não houve nenhuma fatalidade ligada à doença em todo o território chinês desde o início do surto, em janeiro. Ainda que as estatísticas divulgadas pela ditadura comunista sejam alvo de contestação, sabe-se que a China mantém o número de novos casos em patamares ínfimos — menos de trinta por dia — desde março. Tudo sugere que o pior, enfim, ficou para trás. E, agora que debelou a contaminação, a China busca se posicionar como a nação que vai alavancar o crescimento global.

Organizado pelo comando firme de Xi Jinping, o planejamento central tem sido seguido à risca. Primeiro, decidiu-se pela reabertura das fábricas, ainda em fevereiro. Linhas de produção e empresas instalaram câmeras de infravermelho com capacidade para captar a temperatura dos funcionários. Quem estiver com febre será identificado e isolado imediatamente. A ação também ocorre nas 413 estações do metrô de Xangai, o maior do planeta. Além disso, os chineses têm um cartão de saúde ativado no celular. Só é possível movimentar-se nos transportes, e mesmo ter acesso a bairros, se o cartão mostrar que o usuário está saudável e não teve contato com enfermos. O aparato, garante o governo, traduz-se numa situação de quase normalidade: 98% das companhias estão em operação, assim como 89% das obras de infraestrutura. Todo o investimento feito por décadas a fio em tecnologia para manter o controle social — o que outrora chocava democracias mundo afora — trabalha agora a favor da retomada econômica do gigante asiático. “A China está pronta para liderar a economia global, e realmente deseja assumir esse papel”, diz Salvatore Babones, da Universidade de Sydney.

Entre os trunfos chineses está sua capacidade de financiar projetos de infraestrutura, bancar empréstimos a governos em apuros e, é claro, prover ajuda humanitária — principalmente para países em desenvolvimento. Algo semelhante ao que os Estados Unidos fizeram após a II Guerra, quando custearam a reconstrução da Europa a partir do Plano Marshall. À época, isso forneceu legitimidade à liderança americana. “Como a China saiu primeiro da crise, tem a oportunidade única de garantir os investimentos em infraestrutura e a entrega de equipamentos médicos”, diz o professor Robert Gulotty, da Universidade de Chicago. Por meio do projeto Um Cinturão, Uma Rota, que estabelece uma versão modernizada da antiga Rota da Seda — o trajeto transasiático que impulsionou o desenvolvimento do comércio no continente há mais de 2 000 anos —, associado a uma extensa rede de rotas marítimas estruturada ao longo do século XXI, a China intensifica o estreitamento dos laços com seus parceiros comerciais. O gigantesco plano de conectividade logística mundial foi deflagrado em 2013 ao custo de 1 trilhão de dólares e, neste momento, coloca o país numa posição vantajosa para atender aos mercados impactados pela pandemia. Oitenta nações estão integradas nessa rede, inclusive o Brasil, e é isso que permite que empresas façam rápido despacho de itens, tanto de lá para cá quanto de cá para lá. Na última década, a China redefiniu o conceito de globalização, e até por isso mesmo a disseminação do coronavírus foi tão voraz e não pôde ser contida de forma tão eficiente quanto a de outras doenças semelhantes, como Sars, em 2003, e Mers, em 2015.

Com um número crescente de países dependentes de sua produção — evidenciado pelo apagão das máscaras hospitalares —, a China associou seu poderio econômico ao antigo conceito de soft power — termo utilizado para designar a habilidade de um Estado em influenciar indiretamente a cultura de outras nações. Contudo, a ditadura entende que terá poucas chances de provocar entusiasmo em democracias que prezam pelas liberdades individuais. Assim, dada a fragilidade de diversas economias, muitas delas desenvolvidas, a forma mais eficaz de exercer esse soft power passa a ser pela provisão de bens públicos — como as doações das próprias máscaras à Itália, ao Irã e à Sérvia — em momentos de necessidade. “A China sabe que não tem o poder de atração dos Estados Unidos. Ela tem uma sociedade fechada, com costumes bastante diferentes das demais. Mas quer ser vista de maneira positiva pelo resto do mundo. Isso atrai aliados no futuro, quando o país for negociar acordos em seu interesse”, diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV.

A ambição chinesa encontra terreno fértil devido ao vazio deixado pelos Estados Unidos. Xi Jinping tem usado os erros de Donald Trump para demarcar a superioridade de seus métodos. Com sua potente máquina de propaganda estatal, o dirigente aponta o que considera sinais de decadência no rival: derrocada na ciência, governo ineficiente e individualismo. O resultado dessa combinação, segundo a China, se traduz nos números. Ainda longe do fim da epidemia, os Estados Unidos somam 450 000 infectados, cinco vezes mais que o registrado na China (como se trata de uma ditadura, os dados chineses podem estar maquiados). O péssimo manejo da crise começou com a rejeição de fatos científicos. Trump classificou a epidemia de “histeria democrata”. Depois, passou a chamar a Covid-19 de “vírus chinês”, algo que seria contido apenas com o corte de voos para o exterior. Por fim, postergou quanto pôde o confinamento, temendo efeitos econômicos. Trump permitiu que metrópoles como Nova York fossem acometidas pela emergência médica. “Hoje, a maior cidade americana soma 82 000 casos e 4 200 mortos, algo que não se viu em Xangai ou Pequim.

Desde a II Guerra, os Estados Unidos desempenharam papel central em situações de emergência. A expertise do país em resolver problemas de alta complexidade é uma das bases de sua dominância. Na última grande epidemia, quando o ebola castigou a África Ocidental, em 2015, os americanos comandaram um painel de cientistas que debelou a doença. Essa força não tem sido vista na crise da Covid-19. O coronavírus demonstrou que os Estados Unidos não só perderam o foco na posição de liderança como parecem menos capazes de exercê-la. Além da ausência de resposta federativa, Trump se viu num apagão inédito de produtos. Calcula-se que a nação tenha só 1% das máscaras e respiradores e 10% dos ventiladores de que precisará para enfrentar o pico da epidemia. A crise deixou estados como Massachusetts sem suprimento de máscaras N95 — as do tipo azul, cuja metade da fabricação mundial está na China. O governador do estado, Charlie Baker, teve a ajuda do empresário Robert Kraft, dono do time de futebol americano New England Patriots, para comprar na China e enviar para Boston 1,2 milhão de unidades. O ato denota tanto a solidariedade do empresariado dos EUA quanto o desespero de autoridades locais diante da falta de coordenação federal.

O comportamento errático do presidente Trump tem revoltado até seus aliados próximos. Foi o que aconteceu quando vetou a exportação de máscaras para o Canadá e decidiu pagar mais por insumos médicos que já haviam sido encomendados por outros países. A Alemanha chegou a acusar os EUA de praticar “pirataria moderna”. “Essa é uma tendência que se acelerou na epidemia. O isolacionismo americano, somado à ascensão tecnológica chinesa, é sinal claro de uma nova ordem”, afirma Leon Levy, analista da consultoria Eurasia. Ao contrário dos Estados Unidos do pós-guerra, a China está longe de controlar parcela significativa do produto interno bruto mundial — em 1945 os americanos abocanhavam 35% dele, enquanto a China detém atualmente 16%. Também não é soberana em ciência, tecnologia ou produção cultural. Por outro lado, essas qualidades americanas — que até hoje mesmerizam aliados, como o presidente Jair Bolsonaro — não são mais exclusivas. A China é o maior credor de dívidas de países desenvolvidos e abraça os emergentes com seus fundos de investimento. “Xi Jinping está conseguindo, com sua mentalidade globalizadora, emparelhar-se em influência com Trump”, diz Dawisson Belém Lopes, pesquisador da UFMG.

O fiel da balança na disputa de poder entre Estados Unidos e China é a internet. Os chineses dependem fortemente dos produtores americanos de chipsets, como Intel, AMD e Qualcomm, a ponto de uma interrupção do suprimento — algo que está sendo discutido pelo Congresso dos EUA — ter potencial de inviabilizar a expansão de gigantes como a Huawei no segmento de internet de alta velocidade. Além disso, Google e Facebook mantêm a maior parte do globo dependente do capitalismo liberal americano. Nesse aspecto, o Ocidente ainda prefere lidar com o poderio privado dos Estados Unidos a deixar suas informações sob custódia de companhias chinesas. A China deseja e vai lutar pela liderança — mas os Estados Unidos sempre surpreendem pela capacidade de recuperação e inovação diante dos desafios.

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