Com novo ministro, Bolsonaro prepara genocídio Cuide-se

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Não foi exatamente uma surpresa. Fazia tempo que Jair Bolsonaro ameaçava demitir Luiz Henrique Mandetta do cargo de ministro da Saúde e dar uma guinada na estratégia de reação à pandemia do coronavírus. O presidente foi convencido por militares a adiar a decisão por enquanto, mas as divergências foram maiores. Na tarde da quinta 16, depois de conseguir algum consenso dentro do governo e o nome do oncologista Nelson Teich para substituí-lo, Bolsonaro finalmente mandou Mandetta embora. Por trás do desligamento do ministro, um aspecto maior: o governo vai mesmo flexibilizar a quarentena. E pretende fazer isso o mais breve possível, antes mesmo da chegada do período de pico da Covid-19 ao Brasil (o que, segundo as estimativas mais recentes, acontecerá nos meses de maio e junho). Com a troca, o objetivo é incentivar uma retomada mais rápida da atividade econômica, para atenuar a queda do PIB neste ano, que poderá chegar a 5%. O temerário plano, que desconsidera as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) neste estágio da pandemia, pretende implantar um isolamento seletivo da população. Isso significa que apenas os infectados e pessoas dos grupos de risco, como idosos, devem ficar em casa. As demais poderão retomar suas atividades, desde que usem máscara de proteção e álcool em gel.

Embora a ciência e as estatísticas mostrem que este ainda não é o momento, o governo quer adotar a quarentena apenas em pontos geográficos com maior concentração de casos suspeitos, e não mais obrigar uma cidade inteira a ficar em casa. Assim, municípios e regiões industriais voltariam a funcionar normalmente, mesmo com determinadas zonas interditadas. O presidente e seus auxiliares reclamam do excesso de medidas restritivas de governadores e prefeitos, que teriam travado até mesmo polos industriais que não haviam apontado casos de contaminação pelo novo coronavírus. Um oficial da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que acompanha a evolução do vírus, ouvido por VEJA, diz que a orientação do Ministério da Saúde em favor do isolamento, seguida por governadores e prefeitos, provocou paralisação em cidades como Jandaia do Sul e Cambé, no Paraná, e Patrocínio, em Minas Gerais, antes mesmo da chegada da doença. “O vírus não chegou a 80% das cidades brasileiras, mas grande parte delas sofre um verdadeiro lockdown”, diz ele. A avaliação (que despreza o fato de que, dessa forma, o vírus vai chegar nesses lugares) é que é possível reativar com segurança parte da produção. “Estamos estudando como diminuir o impacto da pandemia na economia e, ao mesmo tempo, começar a impulsionar o crescimento”, disse um assessor da ministra da Agricultura, Tereza Cristina.

Um importante personagem do círculo palaciano de Bolsonaro contou a VEJA que uma das propostas em estudo é criar um sistema que permita o controle de segurança nas empresas. Cada uma delas informaria, por exemplo, o seu ramo de atuação e os equipamentos de prevenção à disposição dos funcionários, como máscaras e luvas. A vigilância, então, faria uma inspeção e, cumpridos os requisitos exigidos, permitiria o retorno ao trabalho. “Não vai ter jeito, a gente vai ter de começar a liberar as pessoas aos poucos”, afirma um oficial da cúpula do Exército, setor temeroso de que o recrudescimento da crise descambe para desemprego em massa, fome e saques. Ele garante que a meta é assegurar o abastecimento do país e a manutenção de empregos sem que isso provoque um descontrole ainda maior nos casos da Covid-19. Até bem pouco tempo atrás, o presidente tratava com desdém a possibilidade de mortes em razão da flexibilização do isolamento. “O timing da retomada da economia é o mais delicado. Isso terá de ser feito, mas a gente ainda não sabe o comportamento da curva da contaminação”, pondera o oficial do Exército. É justamente aí que mora o perigo.

Ninguém no entorno do presidente sabe ao certo as consequências dessa guinada — nem se será possível implementá-­la de Brasília (veja a reportagem na pág. 36). Estudos recentes dão uma dimensão do que pode estar em jogo. Levantamento de cientistas da Imperial College de Londres, uma das universidades mais respeitadas do mundo, mostrou que sem distanciamento social logo no início haveria quase 188 milhões de contaminados e mais de 1 milhão de mortos no Brasil. Num cenário com 45% dos brasileiros isolados, o pico de mortos cairia para 627 000, e o de contaminados para 122 milhões. Aumentando o isolamento dos mais velhos e testando massivamente a população, o que ainda não ocorre no país, restariam 44 000 mortos. São dados assustadores que se espera sejam totalmente equivocados. Mas o fato é que ainda não atingimos o pico da doença, e o número de mortos vem aumentando nas últimas semanas. Ao trocar de estratégia em meio à pandemia, Bolsonaro faz uma aposta arriscadíssima: a de que o vírus não sairá de controle. Se isso acontecer, o preço a pagar será alto. Caso o número de contaminados e de óbitos se multiplique, seu capital político será profundamente afetado (isso para dizer o mínimo). Guiado pela intuição, porém, e de olho nas eleições em 2022, o presidente decidiu partir para o tudo ou nada.

A resistência de Mandetta a essa reviravolta na estratégia de combate ao coronavírus tornou sua permanência insustentável. Ele e o presidente já vinham se desentendendo havia algum tempo, mas Bolsonaro hesitava em demiti-lo, levando em consideração o risco de fazer isso em plena crise e também avaliando o inevitável desgaste político que acompanharia a decisão. Para o presidente, o melhor seria que o ministro pedisse para sair — o que ele se recusava a fazer. Diante do impasse, o governo optou por um processo de fritura, que se estendeu por dias e envolveu cenas de constrangimento explícito. Convocado para uma reunião sobre o coronavírus na terça-feira 14, Mandetta chegou atrasado, foi ignorado pelo presidente e permaneceu o tempo todo em silêncio e cabisbaixo. No dia seguinte, uma nova investida: o governo fez circular que já tinha uma lista de possíveis substitutos — outro balão de ensaio para testar a resiliência do ministro, que, ainda assim, se mostrava impassível. “Eu deixo o Ministério da Saúde em três situações: uma, quando o presidente não quiser mais o meu trabalho. A segunda é se eventualmente — e isso a gente não pode saber — eu pego uma gripe dessas e tenho de ser afastado por forças alheias à minha vontade. E a terceira é quando eu sentir que o trabalho feito já não é mais necessário”, desconversou ele.

O arsenal de maldades, porém, não se havia esgotado. O site de VEJA revelou que, no 4º andar do Palácio do Planalto, onde funciona a cúpula do gabinete de crise do coronavírus, comandado pelo general Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil, um grupo de espiões da Abin e oficiais de inteligência do Exército estavam fazia dias passando uma espécie de pente-fino em todos os contratos assinados recentemente pelo Ministério da Saúde com empresas prestadoras de serviço. Oficialmente, o objetivo seria simplesmente verificar se os contratos estavam em sintonia com as estratégias de combate à doença. A verdadeira intenção, no entanto, era outra. Os agentes buscavam indícios de corrupção e evidências de que o ministro seria um mau gestor. Eles reuniram em um dossiê informes sobre supostos pagamentos por serviços que nunca foram prestados, contratos que foram firmados com empresas que não existem e cobrança de comissões. Também foi elaborada uma lista de erros que o ministro teria cometido, o último deles envolvendo a compra de respiradores para atender aos hospitais de Manaus. Os aparelhos, enviados recentemente pelo ministério ao Amazonas, não puderam ser utilizados porque faltavam acessórios básicos. Em entrevista ao site de VEJA, Mandetta desabafou: “Já chega, né?”. Era o capítulo final.

Ainda não há definição nem detalhamento sobre o cronograma do afrouxamento das regras de distanciamento social que será proposto e tampouco o grau de concordância do novo titular da pasta sobre essa orientação. Mas fala-se muito no exemplo da Coreia do Sul, um dos primeiros países a conseguir aliar o controle da doença à manutenção da atividade econômica. Lá, a tecnologia e a testagem maciça combinadas foram as chaves mestras de uma estratégia considerada bem-sucedida de retomada (veja reportagem na pág. 54). Ao demitir Mandetta, Bolsonaro estabeleceu que o novo ministro deveria ser alguém transigente à ideia da flexibilização do isolamento, ter o apoio da classe médica e que “fosse rico”, segundo o presidente, para não sucumbir às tentações do bilionário orçamento do Ministério da Saúde. Nelson Teich, de 62 anos, se enquadra em todos esses quesitos e ainda agrega outras virtudes — tem perfil acadêmico, experiência internacional e, além de médico, é empresário com especialização em economia.

Vencida essa etapa, o próximo passo do governo será uma alteração na comunicação. Na semana passada, a Secretaria de Comunicação da Presidência divulgou uma nova campanha sobre o coronavírus, com o mote “Proteger vidas e empregos”. A peça traz um tom mais ameno que o da campanha anterior, cujo slogan era “O Brasil não pode parar”, que acabou sendo barrada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, por ser “desin­formativa”. Para evitar novos problemas, Bolsonaro vem sendo orientado a moderar em seus pronunciamentos, entrevistas e aparições. O marqueteiro Sérgio Lima, hoje responsável pela comunicação do Aliança pelo Brasil, o partido de Bolsonaro em formação, foi encarregado dessa tarefa. Foi ele, por exemplo, quem escreveu parte dos dois mais recentes discursos do presidente — o último deles falando em solidariedade às famílias de vítimas do coronavírus, algo até então inédito. Com distanciamento social ou não, uma coisa é certa: o número de vítimas vai aumentar nas próximas semanas. E a quantidade delas terá uma relação direta com o sucesso ou fracasso da arriscada aposta de Bolsonaro.