Mandetta escreverá livro sobre passagem pelo governo

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Foto: Reprodução/Istoé

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, está escrevendo um livro sobre os dias de pandemia que viveu no comando do ministério. “Sempre anotei tudo o que passei ali dentro. Tenho muito material”, afirma ele.

Jair Bolsonaro, por enquanto, não fará parte das memórias. “Não vou escrever sobre política. Eu acho que não ajuda no momento. Tenho que ter um distanciamento maior para falar disso”, afirma.

O ex-ministro conversou com a coluna de Campo Grande (MS), para onde foi de Brasília de carro com sua mulher, Terezinha. Ele comprou uma coalhada num estabelecimento comercial aberto e viajaria para a fazenda da família para visitar os pais, Helio, 89, e Olga, 83.

“Nem vou encostar neles”, diz o ex-ministro, questionado se estaria seguindo as orientações dele próprio sobre isolamento social.

Mandetta falou da despedida do ministério, em que se aproximou de funcionários sem máscaras e chegou a abraçar uma servidora. A cena viralizou.

“Todo mundo queria me abraçar. Os funcionários choravam, foi uma comoção. Escolhemos uma delas para me dar o abraço em nome de todos”, afirma. “Mas tá errado. Totalmente errado. Pode me dar um pito”, diz.

Mandetta afirma que deixou a Saúde com a curva de disseminação do vírus achatada graças ao isolamento, em especial no Rio e em SP. “O número de casos crescia 28%, dobrava a cada quatro dias. Quando saí, o crescimento já era de 8%”, afirma.

“Os componentes da nossa cultura pesaram”, diz ele. “O indígena: quando tem uma doença, eles vazam para o meio do mato porque sabem que o contágio é devastador”, afirma. “A nossa herança negra registra que é preciso trabalhar —mas exige segurança. Está criando mecanismos para se cuidar”, segue.

“Só quem está gritando é a Casa Grande, que vê o dinheiro do engenho cair”, diz Mandetta. “A Casa Grande arrumou o quarto dela, a despensa está cheia. Tem o seu próprio hospital. Lamenta muito o que está acontecendo —mas quer saber quando o engenho vai voltar a funcionar.”

Leia a íntegra da conversa da coluna com o ministro, que atendeu o celular de manhã, quando partia rumo à fazenda para visitar os pais:

Estou em Campo Grande. Vim de boa, vim de carro, com a minha mulher.

Em Campo Grande as coisas estão abertas. Fui comprar uma coalhada, [o estabelecimento comercial] estava aberto, tá tudo aberto.

Vim ver o meu pai e a minha mãe [Helio Mandetta, de 89 anos, e Olga, de 83]. Estou indo para a fazenda.

Neste tempo todo [de crise do coronavírus], eu falei todos os dias com o meu pai. Inclusive a frase “médico não abandona paciente”, que eu repetia, é dele.

Primeiro que eu não vou ficar enconstando neles. Temos casa [na fazenda] a 100 metros, 200 metros umas das outras.

Tenho cinco dias para respirar. Depois volto para Brasília.

No ministério o distanciamento funcionou. Ficamos sempre a 2 metros, 2,5 metros, até 3 metros uns dos outros. Cada um com a sua cadeira, a sua caneta, o seu copo.

Na despedida, a gente escolheu um para dar abraço em nome de todos. Todo mundo queria me abraçar. Os funcionários choravam, foi uma comoção. Escolhemos uma delas para me dar o abraço em nome de todos. Mas tá errado. Totalmente errado. Pode me dar um pito.

Está fora de consideração. Não vou ser secretário.

E eu sei lá! Eu não sei é de nada. Agora o que eu sei é que preciso cortar o cabelo.

O que a gente percebe é que há dois extremos que estão se esgotando. Há os que defendem cegamente o Lula. E há os de direita, que acreditam que tudo é uma conspiração para acabar com o Bolsonaro.

Há condições para um diálogo de reconstrução nacional.​

Vou escrever. Escrever como foi a história dessa pandemia. Eu já estou escrevendo. Sempre anotei tudo o que eu passei ali dentro. Tenho muito material. A quantidade de relatórios que a gente gerou já dá um tomo.

Não vou falar de política. Eu acho que não ajuda no momento. Tem que ter um distanciamento maior para falar disso [da relação dele com o presidente da República].

Vou falar do que vivi. De como os EUA desfizeram as compras internacionais, por exemplo. Não o governo norte-americano. Mas a iniciativa privada do país, que foi induzida, incentivada, a fazer isso [pirataria internacional de produtos].

Houve um momento em que precisávamos abastecer o país [com materiais de saúde] e 14 capitais brasileiras estavam sem voos, com os aeroportos fechados. Com abastecer um país numa emergência sem vôos?

Estou me organizando com os atores internacionais.

Tudo vai mudar depois do coronavírus. Vamos ter que repassar as modelagens, as escalas dos sistemas de saúde, a biossegurança.

Vai vir um tempo com diminuição de nossas liberdades individuais, até que surja uma solução mais robusta [para a doença causada pelo novo coronavírus].​

Vamos viver por um tempo o novo normal. Vamos sair de casa, mas com condicionantes. Há cidades já em que os ônibus não saem cheios, como sempre foi. Só pode ter gente sentada.

Vamos ter que apresentar atestado de vacina para viajar pelo mundo, por exemplo. Vai ser no mundo inteiro, um controle digital, e não um papelzinho [como ocorre, por exemplo, no caso da febre amarela].

Isso aconteceu na história de todas as epidemias. Aquele cumprimento distante dos japoneses, com a cabeça, é fruto da época das pestes. O cumprimento militar, com continência, a mesma coisa: era uma questão de saúde.

O que vai acontecer com os brasileiros, que são culturalmente tão próximos? Damos um beijo, dois beijos, e ainda o terceiro para casar.

Muita coisa vai ser diferente. Quem vai ditar isso, quem vai registrar e também antecipar isso, vai ser a cultura, o teatro, o cinema, a novela.

O vírus impactou o sistema inteiro. As aulas vão ser diferentes. As reuniões. O meu filho estuda Direito na USP, ele está numa fazenda estudando.​

Eu recebia dez deputados, vários encontros. Agora, numa conferência virtual, eu falo com cem ao mesmo tempo.

Eu nunca acreditei muito em previsão de cenários [para a crise do coronavírus].

Como eles são proporcionais ao comportamento da sociedade, é preciso ver o que ela vai fazer para saber o que vai acontecer. As pessoas vão usar álcool gel? Haverá distanciamento social? Vão ficar em casa?

Chegamos a picos [de adesão às medidas de restrição] em que 79% das pessoas ficaram em casa. O Rio de Janeiro e São Paulo, os governadores estão comprometidos. Eles conseguiram, em duas semanas [de isolamento social], quebrar a inclinação em espiral [da disseminação da pandemia].

Nova York não conseguiu isso, Chicago não conseguiu, Los Angeles não conseguiu.

A gente conseguiu. Nós domamos a curva. Falavam que o Brasil chegaria a 700 mil óbitos em 30 dias. Nós achatamos a curva. Quanto tempo vamos conseguir domar [o vírus]? Depende.

O número de casos estava subindo 28% por dia. A cada quatro dias, dobrava. Quando saí [do cargo de ministro], o crescimento era de 8% ao dia. Estamos ganhando tempo [para preparar o sistema de saúde].

Conseguimos evitar a famosa espiral aguda [de contaminação e mortes]. Sem isolamento, teríamos entrado em uma espiral trágica. São Paulo tem 20 milhões de pessoas.

E precisava eu falar alguma coisa [a favor do isolamento social]? Nós vimos o que aconteceu na Itália, na Espanha, em Nova York. As pessoas não raciocinam?

O SUS deu uma aula.

Veja nos EUA. As pessoas lá não têm atenção primária [no sistema de saúde, como têm no SUS].

Então o que tem de obesos, diabéticos, hipertensos sem tratamento lá… E isso não acontece aqui.

O SUS tem problemas. É sub-financiado É preciso discutir isso. Mas o SUS falou por si. É um sistema. Há um comando [interligando] 27 estados, 5.700 municípios brasileiros, que puderam falar, mostraram as dificuldades. Nos EUA, é cada estado por si.

Os componentes da nossa cultura pesaram. O componente indígena pesou: quando tem uma doença, os indígenas vazam para o meio do mato porque sabem que o contágio pode ser devastador. Então a nossa parte indígena vazou.

A nossa herança negra, africana, era obrigada a trabalhar, mesmo doente. Registra que é preciso trabalhar —mas exige segurança, proteção. Opa, estou desprotegido! Ele foi e se auto-cuidou. As pessoas estão criando mecanismos para se cuidar.

Só quem está gritando é a Casa Grande [referindo-se aos brancos escravocratas], que está vendo o dinheiro do engenho cair.

A Casa Grande arrumou o quarto dela, a despensa está cheia. Tem o seu próprio hospital. Ela lamenta muito o que está acontecendo –mas quer saber quando o engenho vai voltar a funcionar.

Então somos impactados por essas reações, que são da nossa cultura.

Quando uma parte da população estiver imunizada [depois de pegar a Covid-19], o vírus já não consegue circular [com a mesma intensidade].

[A Covid-19], para nós, médicos, é mais uma doença –desde que tenhamos condições de tratar os pacientes. A doença, em si… nós já tratamos de doenças dez mil vezes mais complexas.

Mas esse vírus entrou e colocou em risco o sistema de saúde. De repente faltou máscara [para os profissionais da área], faltou luva. Isso se conserta com o tempo. Mas precisamos nos reajustar a esse tempo.

Haverá uma vacina e ela vai ser superada. Eu tinha 25 anos quando surgiu a Aids. Foi um impacto enorme. Não havia tratamento. E nós superamos a Aids. Levamos uma década, mas conseguimos.

Com o coronavírus, eu sou otimista. Acho que no segundo semestre já poderemos ter alguma boa notícia.

Folha