Miliciano bolsonarista teve rede de apoios

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Foto: Polícia Civil

O Ministério Público do Rio e a Polícia Civil investigam a existência de uma “rede de amigos” que teria dado sustentação financeira e operacional ao ex-policial militar Adriano Magalhães da Nóbrega, o capitão Adriano, e seus familiares. O objetivo é saber quem ajudou o miliciano a ocultar patrimônio, blindando negócios e crimes, e participou de sua fuga. Foragido da Justiça por um ano, Adriano foi morto pela polícia em fevereiro, durante uma operação em Esplanada, na Bahia.

Com prisão decretada desde janeiro de 2019, alvo da Operação Os Intocáveis, que mirou crimes da milícia que domina a comunidade de Rio das Pedras, no Rio, o miliciano virou alvo de outra apuração no ano passado: a de suposto esquema de “rachadinha” (apropriação de salários de assessores) no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Atualmente senador pelo Republicanos, o filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro ocupou cadeira na Assembleia de 2003 a 2018.

Foram encontrados indícios, nas duas frentes de apuração, de que políticos, magistrados, policiais, agentes públicos e empresários podem ter integrado essa rede de proteção, que, segundo investigações, garantiu apoio logístico e financeiro para a fuga de Adriano e a defesa de aliados. Parte deles é apontada como “sócios ocultos” dos negócios da milícia. Investigadores buscam identificar quem custeou e ajudou nas defesas.

Há suspeita de tentativa de obstrução da Justiça. As apurações são concentradas no Rio, mas envolvem investigações de outros Estados, como Sergipe, Tocantins, Rio Grande do Norte e Bahia. As investigações conduzidas pelos promotores do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc) foram retomadas no mês passado, após a terceira paralisação por ordem de tribunais superiores, em atendimento a questionamentos das defesas dos alvos. São apurados crimes de organização criminosa, peculato e lavagem de dinheiro.

Ex-capitão do Bope, líder da milícia que dominava Rio das Pedras e um dos fundadores do Escritório do Crime (grupo de matadores de aluguel), Adriano empregou a ex-mulher e a mãe no gabinete de Flávio na Alerj. Contratadas em 2007 e 2016, respectivamente, as duas foram demitidas em dezembro de 2018, após reportagem publicada pelo Estadão revelar movimentação suspeita de R$ 1,2 milhão em conta do ex-chefe de gabinete Fabrício Queiroz, comunicada em relatório do antigo Coaf – documento que deu origem à apuração de “rachadinha” em julho de 2018.

As duas foram indicadas pelo então chefe de gabinete, Fabrício Queiroz, apontado pela Promotoria como responsável por comandar a rachadinha. Homem de confiança da família Bolsonaro, Queiroz trabalhou com Adriano no 18.º Batalhão da PM, no Rio. Em 2003, os dois foram alvos de uma investigação, ainda em trâmite, pela morte de uma pessoa, durante uma operação na Cidade de Deus.

A ex-mulher e a mãe de Adriano receberam R$ 1,02 milhão em salários da Alerj entre 2007 e 2018. Do montante, R$ 203 mil foram devolvidos para conta de Queiroz por de transferências bancárias diretas e indiretas identificadas, sendo parte via contas controladas pelo miliciano de dois restaurantes, registrados em nome da mãe, revelaram dados da quebra de sigilos fiscal e bancário dos investigados, decretada pelo juiz da 27.ª Vara Criminal, do Rio, Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau. Outros R$ 202 mil foram sacados em espécie e podem ter sido devolvidos para Queiroz ou diretamente para Adriano ou terceiros.

Homem de confiança da família Bolsonaro, Queiroz admitiu responsabilidade pela indicação da mãe e da ex-mulher do miliciano. Em declaração feita por escrito, via defesa, nas investigações, ele assumiu a captação de parte dos salários dos assessores do gabinete, sem conhecimento do ex-chefe. Ao todo, foram R$ 2 milhões identificados em 483 depósitos de outros assessores em sua conta. No mesmo período, ele sacou R$ 2,9 milhões em espécie. Para a Promotoria, a movimentação em dinheiro vivo serviu para ocultar a origem e o destino dos valores. Quase R$ 1 milhão, seguem sem identificação.

Elo’. Investigadores apontam que Queiroz era o principal elo de Adriano e seus familiares com essa “rede de amigos”, mas não o único. Mensagens de um celular apreendido em 2019 na casa da ex-mulher do miliciano registram conversas entre Danielle, Adriano e Queiroz. Nelas, os três falam de “cargo fantasma” – uma referência, segundo a investigação, ao trabalho dela no gabinete de Flávio. Menciona, ainda, assuntos como defesa jurídica e “os amigos”.

No dia 15 de janeiro de 2019, por exemplo, Adriano falou com Danielle sobre o depoimento que ela teria de prestar, dois dias depois, no MP do Rio, na investigação da rachadinha. Na semana seguinte, seria deflagrada a Operação Os Intocáveis e sua prisão seria decretada. Na conversa, o miliciano repassa à ex-mulher uma orientação do “amigo” para que ela evitasse a intimação.

Para a Promotoria, esse “amigo” é Queiroz.

“Boa noite. O amigo pediu para você não ir a lugar nenhum e também para não assinar nada”, escreve Capitão Adriano para Danielle. Era terça-feira, 18 horas e 26 minutos “Olá, acabei de sair do advogado indicado”, responde ela, passados 15 minutos. “Assinei semana passada o oficio que recebi”, completa. Na sequência, envia ao miliciano cópia da intimação do Ministério Público. O documento é o mesmo que está no processo, assinado por ela em 10 de janeiro.

“Vou passar para ele”, responde Adriano, 20 minutos depois.

No dia seguinte, Danielle assinou procuração com uma advogada, que a representou no processo e pediu para adiar seu depoimento. Ela não é mais defensora da ex-mulher do miliciano. Naquele mesmo dia, Danielle trocou mensagens com Queiroz. Era 16 de janeiro, quarta-feira. O ex-assessor de Flávio Bolsonaro é quem chama a chama. Ele apagou a maior parte das mensagens, mas as respostas são reveladoras do conteúdo da conversa, no entendimento do Ministério Público.

“Chamaram sim”, escreve Danielle. “Um policial veio aqui. Amanhã será o dia do depoimento.” Ela envia a Queiroz a mesma intimação que havia mostrado a Adriano. Depois de mensagens enviadas por Queiroz, apagadas do aplicativo, Danielle afirma: “Eu já fui orientada. Ontem eu fui encontrar os amigos”. Ele diz: “Eu sei”. Ela termina: “Todos nós ficaremos bem”.

O depoimento de Danielle estava marcado para o dia 17, mas ela não compareceu. A mãe do miliciano, que também deveria depor, nunca foi localizada pelos investigadores.

“Apesar das mensagens de Queiroz estarem apagadas, foi possível compreender, pelo contexto das respostas de Danielle, que Fabrício Queiroz queria saber se ela fora chamada a depor pelo Ministério Público e, diante da confirmação, determinou que faltasse, além de deixar claro ter ciência de que a organização criminosa (‘os amigos’) teria providenciado advogados para os envolvidos”, afirmam os investigadores em documento do processo

A morte do Capitão Adriano não encerra as investigações sobre participação dos familiares no suposto esquema de desvios de salários de assessores e de funcionários fantasmas no gabinete de Flávio Bolsonaro, na Alerj. Nem as apurações sobre a milícia de Rio de Pedras e o patrimônio milionário deixado por ele.

O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Felix Fischer negou recentemente pedido da defesa de anulação das quebras de sigilo, telefônico, bancários e fiscais do processo – decretadas pelo juiz da 27.ª Vara Criminal – e envio do caso para instância superior.

COM A PALAVRA, AS DEFESAS

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) nega irregularidades em seu gabinete na Assembleia e diz ser alvo de investigação ilegal desde o início do caso, em 2019. Por meio de sua defesa, busca a anulação das apurações e de provas, como as quebras de sigilos fiscal, bancário e telefônico, com recursos no Tribunal de Justiça do Rio, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).

O criminalista Frederick Wassef, que defende Flávio, afirmou que os investidores do Rio “quebraram ilegalmente” o sigilo fiscal e bancário do senador.

Flávio Bolsonaro divulgou nota em 2019 em que afirmou que era “vítima de uma campanha difamatória com objetivo de atingir o governo de Jair Bolsonaro”. “A funcionária que aparece no relatório do Coaf foi contratada por indicação do ex-assessor Fabrício Queiroz, que era quem supervisionava seu trabalho. Não posso ser responsabilizado por atos que desconheço, só agora revelados.”

Sobre a contratação de familiares do miliciano Adriano da Nóbrega, a defesa de Flávio afirmou em nota divulgada anteriormente que desconhecia o passado de crimes do ex-policial militar, considerado, até então, um ex-policial do Bope. Adriano chegou a ser homenageado por Flávio quando estava preso. “Sobre as homenagens prestadas a militares, sempre atuei na defesa de agentes de segurança pública e já concedi centenas de outras homenagens. Aqueles que cometem erros devem responder por seus atos”, disse Flávio na ocasião.

A defesa de Fabrício Queiroz não foi localizada. Em nota divulgada anteriormente, o advogado que representava o ex-assessor no caso informou que ele “repudiava veementemente qualquer tentativa espúria de vincular seu nome à milícia”. Queiroz confirmou que “solicitou a nomeação da esposa e mãe” de Adriano porque a família “passava por grande dificuldade”. E desconhecia o suposto envolvimento dele com “eventuais atividades milicianas”.

A defesa de capitão Adriano e seus familiares não foi localizada pela reportagem.

Estadão