Pandemia já fragiliza direitos humanos

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Foto: REUTERS/Sebastian Castaneda

Em pleno estado de emergência devido à pandemia do novo coronavírus, o Congresso peruano isentou de qualquer responsabilidade criminal os militares e policiais que ferirem ou matarem pessoas enquanto patrulham as ruas durante a quarentena nacional obrigatória. Na Bolívia, o governo interino de Jeanine Áñez vem sendo criticado por ameaças à liberdade de expressão. O uso indiscriminado de medidas restritivas e abuso da força policial são justamente algumas das preocupações de organizações de direitos humanos em tempos de pandemia, especialmente na América Latina, região onde há um histórico de governos e ditaduras repressivas.

Outra grande preocupação é com grupos altamente vulneráveis, em bairros mais pobres, que geralmente têm acesso inadequado à água, saneamento e assistência à saúde — caso das favelas brasileiras. Para Erika Guevara Rosas, diretora da Anistia Internacional para as Américas, a situação sem precedentes históricos “revela as falhas estruturais do continente, uma das regiões mais desiguais e violentas do mundo”.

— Muitos governos da região, como Nicarágua, Chile e Venezuela, já vinham respondendo com repressão e violência a protestos, o que gerou um contexto de massivas violações de direitos humanos nos últimos meses — afirmou. — Nesse contexto, medidas restritivas e precauções não devem ser usadas como desculpa para violentar ainda mais os direitos humanos. É preciso pensar em planos de contingência e nos grupos mais vulneráveis em vez de usar simplesmente a força.

O fechamento de fronteiras na região também é visto com preocupação, principalmente porque a América Latina vive atualmente uma grande crise de mobilidade, causada principalmente pelo alto fluxo de venezuelanos em direção a países vizinhos, como a Colômbia. O governo de Iván Duque fechou todas suas fronteiras terrestres, fluviais e marítimas e decretou estado de emergência. Em sua última medida, anunciou que não vai mais permitir a entrada de nenhum passageiro de outros países, nem mesmo se forem colombianos, por 30 dias.

No último fim de semana, centenas de venezuelanos começaram a voltar para casa, temendo o pior. Na terça-feira, o presidente Nicolás Maduro ordenou a hospitalização de todas as pessoas infectadas com o novo coronavírus no país, onde oficialmente há 166 casos e sete óbitos, e garantiu que há 20 mil leitos para o “isolamento”.

— Os venezuelanos estão fugindo da repressão política e de uma emergência humanitária muito séria. Fechar a fronteira com os venezuelanos não resolverá a crise. Os países vizinhos podem, é claro, tomar medidas para impedir a transmissão do vírus, inclusive entre fronteiras, mas têm a obrigação de permitir que os venezuelanos solicitem asilo e, de acordo com o direito internacional, não podem devolver os requerentes de asilo ao seu país de origem se correrem o risco de serem perseguidos ou torturados — alerta José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas da Human Rights Watch e especialista em América Latina.

No Brasil, antes mesmo de determinar o fechamento de todas as fronteiras terrestres, o presidente Jair Bolsonaro decretou o fechamento parcial com a Venezuela, em Roraima.

— Não apenas na região, mas particularmente, a pandemia desatou políticas discriminatórias e fascistas. Países com narrativa xenófoba vão evidenciando esses discursos. Num momento como o atual, não há espaço para xenofobia. Os Estados têm que colaborar entre si — afirma a diretora da Anistia Internacional para as Américas.

Além disso, Guevara Rosas ressalta a alta vulnerabilidade das pessoas que já são barradas na fronteira graças ao Protocolo de Proteção aos Migrantes (PPM), nome oficial do programa conhecido como “Fique no México”, confinadas em centros que não cumprem os padrões básicos de higiene. Nos EUA, centros de detenção para imigrantes já registram 19 casos de Covid-19.

No mês passado, os dois países concordaram em fechar parcialmente fronteiras para conter avanço do coronavírus.

— É uma medida que gera muita preocupação porque são pessoas muito expostas à pandemia pela falta de acesso à saúde. São famílias inteiras, ou crianças desacompanhadas, que podem se contagiar e propagar a epidemia ao retornar a seus países de origem, em geral com com infraestruturas de saúde já precárias. E mesmo que as fronteiras oficialmente se fechem, as travessias ilegais continuarão, de forma muito mais perigosa.

Sem água e saneamento adequados, esses locais podem ser um local para a disseminação da doença, alertam:

— Pode ser mais difícil para os moradores pobres manter o distanciamento social e ter acesso a produtos de higiene. Além disso, trabalhadores com baixos salários, especialmente os do setor informal, podem sofrer dificuldades econômicas significativas devido à perda de renda. Por essas razões, os governos devem buscar ajuda para ajudar os moradores pobres afetados e outros grupos vulneráveis — afirma Vivanco.

Guevara Rosas concorda:

— A desigualdade fica ainda mais clara. Um grande número de trabalhadores não pode optar por ficar em casa porque isso significa perder todos os ingressos. Propostas de confinar pessoas que vivem nas favelas voltam a refletir a natureza repressiva dos Estados. É preciso evitar ainda mais violar os direitos humanos sob a desculpa de proteger os cidadãos.

O Globo