Rejeição ao isolamento é igual no Brasil e nos EUA

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Foto: JOSH EDELSON / AFP

É assim que parece quando uma pandemia colide com as guerras culturais nos Estados Unidos: o prefeito de Louisville, no estado de Kentucky, avisou que as igrejas que realizassem cultos no domingo de Páscoa estariam desafiando as regras municipais de distanciamento social. O senador republicano Mitch McConnell, líder da maioria no Senado, respondeu com uma carta em que ameaçava: “pessoas religiosas não devem receber tratamento discriminatório”.

A governadora democrata de Michigan estendeu a proibição de atividades fora de casa para o uso de lanchas. Conservadores a chamaram de autoritária e retrataram a medida como um tapa na cara das pessoas que gostam de atividades ao ar livre. “Não se pode nem pescar”, disse um ativistas local em entrevista à Fox.

E, apesar das lojas que vendem armas de fogo continuarem funcionando na maior parte do país, a Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês) vem propagandeando que “eles querem suas armas”, em um anúncio estrelado pelo cantor country Charles Daniels.

As políticas estaduais e municipais dirigidas a reduzir o ritmo da infecção pelo novo coronavírus está inflamando velhas paixões sobre as questões contenciosas de sempre. Armas, aborto, direito de voto e expressão religiosa — que à primeira vista nada tem a ver com a pandemia que já matou mais de 40 mil americanos — emergiram como linhas de divisão no debate sobre a resposta dos diferentes níveis de governo à crise.

O presidente Donald Trump à vezes fala da importância do distanciamento social, como fez na última segunda-feira, mas também está encorajando o descontentamento, que vê como uma forma de capitalizar as emoções de manifestantes que levam bandeiras “Trump 2020” e pedem que as atividades econômicas e sociais sejam retomadas.

Com as mensagens no Twitter para “libertar” os estados em que os residentes estão sob confinamento — especificamente Michigan, Minnesota e Virgínia, todos com governadores democratas —, ele está alimentando um sentimento de inquietação crescente na direita.

— Há muito descontentamento social — disse Jeff Landry, o republicano que é secretário de Justiça de Louisiana e aliado de Trump. — Os governadores que estão usando a pandemia como uma desculpa para manter certas medidas em vigor fazem isso por sua própria conta e risco.

Até agora, uma revolta geral é improvável. Muitas das manifestações, como a que ocorreu em Denver no domingo, só atraíam poucas centenas de pessoas. Atos maiores, como o que aconteceu na semana passada em frente à sede da Assembleia estadual de Michigan, em Lansing, atraíram ativistas de extrema direita e simpatizantes de milícias, alguns dos quais levavam armas semiautomáticas nos ombros.

As próprias recomendações da Casa Branca refletem o que a maioria dos epidemiologistas afirmam: o distanciamento social, com a limitação dos contatos sociais e o uso de máscaras em público, é crucial para manter o vírus sob controle. Especialistas em saúde, incluindo os que assessoram Trump, advertiram que relaxar essas recomendações poderia levar a um surto de novas infecções.

Mas alguns conservadores que apoiam a campanha do presidente à reeleição disseram acreditar que muitos americanos estão cada vez mais frustrados com as ordens que os proíbem de socializar, trabalhar e ir às igrejas. A Casa Branca está rastreando essas preocupações de perto, e tanto Trump quanto seu vice, Mike Pence, participaram de teleconferências com líderes religiosos para lhes garantir que o governo os está ouvindo.

Depois que uma igreja de Mississippi foi punida por realizar cultos drive-in em desafio a uma ordem local, o secretário de Justiça, William Barr, disse que a liberdade de expressão da congregação havia sido violada.

O Texas, em particular, tem sido um laboratório de uma resposta conservadora à pandemia. Como os estados de Ohio e Alabama, todos dirigidos por republicanos, o Texas incluiu o aborto entre os procedimentos médicos que teriam que esperar o fim da pandemia. Quando o Texas ordenou o fechamento de escolas e negócios não essenciais no mês passado, o secretário de Justiça local, o republicano Ken Paxton, advertiu que os serviços de aborto enfrentariam “a força total da lei” se continuassem operando.

Quatro dias depois dessa advertência, Paxton opinou que as ordens de confinamento não poderiam ser usadas para fechar o comércio de armas.

Em contraste, o governador democrata de Nova York, Andrew Cuomo, declarou que as lojas de armas não eram serviços essenciais, o motivou uma ação legal da NRA, que fez o mesmo no Novo México e na Califórnia.

Em outras questões como os direitos de propriedade e a polícia prisional, o Texas está na linha de frente do choque entre direita e esquerda. Os conservadores se opuseram a esforços locais para impedir que os proprietários de uma segunda casa se mudassem e para expandir o voto por correio, que é limitado a algumas faixas da população, como idosos e pessoas com deficiência física.

A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) processou o governador Greg Abbott por impedir a libertação de presos sob risco de contrair a Covid-19. Um tribunal estadual acabou bloqueando a decisão do governador. A ACLU impetrou mais de 30 ações do tipo pelo país.

Mas há exceções. Na Pensilvânia, os republicanos apoiam a ampliação do voto por correio, e em Oklahoma o governador republicano aprovou a libertação de milhares de prisioneiros, para que a superlotação dos presídios não contribuísse para a infecção pelo novo coronavírus.

— A pandemia criou a esperança de que poderíamos nos unir acima da divisão partidária, e acho que isso está acontecendo em alguns lugares — disse David Cole, diretor legal da ACLU, observando que os atos contra as medidas de distanciamento social têm sido restritos até agora. — O que nos perturba é que o presidente dos EUA encoraje isso.

O Globo