Caso Moro é o último de Celso de Mello

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Foto: Cristiano Mariz/VEJA

Celso de Mello, o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), prepara-se para um dos momentos mais difíceis da carreira profissional de qualquer pessoa: a hora de parar. No caso dele, que se aposenta em novembro, a contagem regressiva já começou — e, ao que tudo indica, terá um final cheio de fortes emoções. Aos 74 anos, o ministro está isolado em um apartamento em São Paulo desde que se submeteu, em janeiro, a uma cirurgia no quadril. Mal sai do quarto e impôs-se recentemente uma rígida clausura. Duas preocupações perpassam na cabeça do mais respeitado juiz da atual composição do STF: a pandemia — ele testou negativo para a Covid-19 — e a relatoria do inquérito que colocou em lados opostos Jair Bolsonaro e Sergio Moro. O ex-ministro da Justiça acusou o presidente da República de tentar interferir politicamente na Polícia Federal. Se ao término da investigação ficar comprovado que Bolsonaro atuou com o objetivo de obter alguma vantagem pessoal para ele ou alguém, o presidente poderá ser denunciado e até afastado do cargo — um caso especial sob a responsabilidade de um juiz muito especial.

Prestes a deixar o tribunal aposentado compulsoriamente aos 75 anos, como determina a lei, Celso de Mello foi escolhido por sorteio para conduzir a apuração que, provavelmente, vai arrematar sua biografia nas três décadas em que ocupou uma cadeira na Corte. Azar do presidente se tiver feito alguma coisa errada. De todos os ministros, o decano é, de longe, o mais afável deles — mas só no trato pessoal. Suas decisões e procedimentos são conhecidos pela contundência, muitas vezes acompanhados de sermões antológicos. Foi assim no julgamento do mensalão, quando ele classificou corruptos como “marginais do poder” que deformavam “o sen­tido republicano da prática política”. Foi assim ao votar em favor da criminalização da homofobia e afirmar que seria incluído no “índex mantido pelos cultores da intolerância”. Foi assim no julgamento de um pedido de liberdade do ex-presidente Lula, quando, reagindo a provocações de militares publicadas em redes sociais, disse que “intervenções castrenses (…) tendem, na lógica do regime supressor das liberdades que lhes segue (…), limitar com danos irreversíveis o sistema democrático”.

“A ideia de Estado democrático de direito traduz um valor essencial e exprime um dogma fundamental: o da supremacia formal e material da Constituição, a significar que ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar a Constituição e as leis da República.”

Celso de Mello, ministro do STF

No inquérito que investiga se Jair Bolsonaro tentou aparelhar politicamente a Polícia Federal, instaurado há pouco mais de quinze dias, os despachos do ministro já contemplam duros recados dirigidos a alvos específicos. Um deles provocou um enorme desconforto nas Forças Armadas: Mello determinou que, se os ministros-­generais Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, Walter Braga Netto, da Casa Civil, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo — os três apontados por Sergio Moro como testemunhas das pressões que ele sofria para mudar a direção da Polícia Federal — se recusassem a depor em um dia predeterminado, estariam sujeitos, como qualquer cidadão, a comparecer “debaixo de vara”. A obser­vação foi considerada desnecessária e uma demonstração da repulsa que o decano cultua pela caserna — repulsa que existe não pelos militares em si, mas pelo que eles podem vir a representar num ambiente politicamente instável.

Celso de Mello tinha pouco mais de 20 anos quando a pensão em que morava, no bairro paulistano da Bela Vista, passou a ser visitada rotineiramente depois do golpe militar. Quando os agentes chegavam, não interessava a hora, todos, especialmente seu vizinho de quarto, o petista José Dirceu, tinham de se levantar e aguardar a devassa que era feita nas dependências. Amigos do magistrado dizem que essa experiência e o endurecimento do regime depois da decretação do AI-5 influenciaram para sempre o comportamento dele. Por isso, o termo “debaixo de vara”, um jargão antigo no meio jurídico, não apareceu por acaso na ordem expedida pelo ministro aos generais. Foi, sim, um recado. “Na reserva e na ativa, todos se enfureceram. Fazer isso é uma ofensa à instituição”, disse um alto oficial do Exército a VEJA. Principal interlocutor dos militares junto ao STF, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, procurou o presidente da Corte, Dias Toffoli, para se queixar.

Até o momento, a investigação que apura a acusação de interferência política na PF se atém sobretudo aos depoimentos do ex-ministro Sergio Moro, de policiais e dos generais que participaram de uma reunião do governo em 22 de abril. Foi nessa reunião, segundo o ex-ministro da Justiça, que o presidente teria explicitado sua intenção em aparelhar a corporação. Na terça-feira 12, por ordem de Celso de Mello, Sergio Moro e seus advogados, defensores do presidente e representantes do Ministério Público assistiram à gravação do encontro. Nela, Bolsonaro fala em “proteger seus familiares e amigos”, conforme transcrição da própria Polícia Federal, mas o contexto da conversa só será conhecido quando a íntegra dos diálogos for divulgada, o que até o fechamento desta edição ainda não havia acontecido.

De acordo com relatos de quem viu o vídeo da reunião, o presidente, ao defender mudanças na PF, disse que estavam querendo prejudicar sua família e que, portanto, poderia trocar toda a sua equipe, desde a segurança até o diretor-geral da Polícia Federal e o próprio Moro. Essa é a parte que interessa diretamente à investigação, a prova, segundo o ex-juiz da Lava-Jato, de que o presidente tentou interferir politicamente na corporação. O restante das duas horas de reunião é um amontoado de comentários do presidente e dos ministros que podem apenas criar embaraços futuros ao governo. Bolsonaro fala em intervir nos ministérios. Irritado, usa termos de baixo calão ao se referir aos governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro. Para completar, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, diz que todos os citados tinham de ir para a cadeia, a começar pelos ministros do STF. “Eu falo sobre a segurança da minha família e dos meus amigos”, afirmou o presidente depois que trechos da reunião vieram a público.

Justamente por não ter expressado de forma clara sua intenção de interferir na PF, mesmo que o contexto indique isso, Bolsonaro alega que não fez nada de errado. Ele explica que ao falar em trocar a “segurança” estava se referindo a agentes subordinados ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general Augus­to Heleno, que reforçou essa tese de defesa em seu depoimento. Ministros do governo dizem que o presidente está tranquilo quanto à divulgação do vídeo. Segundo eles, a estratégia de Bolsonaro é a mesma utilizada com relação a seus exames de coronavírus, ou seja, dar publicidade apenas se houver ordem judicial. Na última quarta-feira, somente depois de o caso chegar ao STF, o presidente divulgou o resultado de seus testes — todos mostram negativo para a Covid-19. “É claro que há alguns comentários constrangedores na reunião, informais, mas nada que exponha criminalmente o presidente e confirme as acusações de Moro”, garante um assessor que assistiu ao vídeo.

O ministro Celso de Mello ainda vai analisar o que disseram todos os personagens citados na acusação de Sergio Moro e as provas. Por enquanto, os depoimentos prestados pouco avançaram no sentido de revelar evidências concretas de que o presidente cometeu crimes. Braço direito do ex-ministro da Justiça e pivô da demissão dele, o ex-diretor da PF Maurício Valeixo, exonerado por Bolsonaro, apresentou uma versão favorável ao presidente ao dizer que desconhecia qualquer tentativa direta de interferência na PF. As pressões do presidente eram dirigidas diretamente ao ex-ministro da Justiça. Os generais Augusto Heleno, Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos também não revelaram nada que pudesse comprometer o Bolsonaro. Indagados pontualmente sobre as suspeitas, Ramos disse que não se recordava se o presidente havia ameaçado demitir Moro. Heleno não se lembrou se Bolsonaro pediu acesso aos relatórios de inteligência da PF. E Braga Netto também se esqueceu dos detalhes da conversa que teve com o ex-ministro da Justiça sobre as mudanças na polícia — um surto de amnésia.

Ao deixar o governo, o ex-juiz da Lava-Jato não acusou diretamente o presidente de ter praticado algum crime. Mas fez graves imputações. Moro explicou que se demitiu por não aceitar interferências políticas na Polícia Federal. Citou principalmente a pressão do presidente para trocar o superintendente da PF no Rio de Janeiro — o que, afinal, se concretizou na semana retrasada. Bolsonaro, segundo o ex-ministro da Justiça, também queria ter acesso a relatórios de inteligência do órgão, indagava sobre apurações que tinham aliados políticos como alvo e cobrava resultados da investigação do atentado que sofreu durante a campanha. O presidente exonerou o diretor-geral Maurício Valeixo sem avisar Sergio Moro, que, em protesto, se demitiu. O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu a abertura do inquérito para investigar eventuais crimes que podem ter sido praticados por Bolsonaro ou pelo ex-ministro.

Esta é a segunda quarentena que o ministro Celso de Mello impõe a si mesmo na última década. Na primeira, em 2013, passou um tempo isolado preparando o voto que, no julgamento do mensalão, admitiria uma nova rodada de recursos para os condenados no caso, como o ex-colega de pensão José Dirceu. Na época, desabafava todas as noites com um amigo a brutal pressão que estava sofrendo da opinião pública para que indeferisse o pedido dos mensaleiros, o que não aconteceu. Às vésperas da aposentadoria, o decano continua sendo a voz mais potente do Supremo em defesa das liberdades individuais. Tornou-se também um contundente crítico do governo. Ele já afirmou que o presidente minimiza perigosamente a importância da Constituição. Em uma de suas notórias decisões, chegou a advertir que “ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar a Constituição”. Nem precisou explicar a quem estava se dirigindo.

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