Covid19 calou protestos no Chile

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Foto: SEBASTIÁN UTRERAS

O marco zero das manifestações sociais em Santiago está vazio desde meados de março. Impressiona o silêncio, interrompido apenas por alguns ônibus, carros e motociclistas nos dias de quarentena pela covid-19 em alguns bairros da cidade. A Plaza Italia ou Plaza de la Dignidad –como foi rebatizada por alguns em homenagem às reivindicações dos cidadãos– foi o lugar onde aconteceu de tudo desde 18 de outubro, quando começou a explosão no Chile.

“É um símbolo. A praça se tornou um memorial da repressão. Nos muros do bairro está relatado o novo Chile e o que ele demanda. Não houve nenhum dia desde 18 de outubro em que as manifestações pararam. Até a pandemia”, conta com propriedade Trinidad Lopetegui (Santiago, 1989), que desde o início das manifestações observou dia e noite, na linha de frente, a evolução dessa praça viva. Artista visual, ela dirige a galeria de arte contemporânea CIMA, um espaço que se tornou os olhos das revoltas. Instalada no último andar de um prédio da década de 1950, transmitiu ao vivo da cobertura o que estava acontecendo. “Os cidadãos reclamam contra um sistema neoliberal insustentável que não prioriza os seres humanos”, diz a gestora cultural chilena. “É um movimento transversal que transcende a esquerda e a direita. Tomamos isso como um dever: contar tudo sem intervenções”, lembra. Primeiro usaram um telefone, depois as câmeras de segurança da própria galeria e, finalmente, um aparelho especial para transmitir em streaming. As televisões ofereceram-lhes dinheiro para usar o espaço e gravar, mas recusaram. Para sair dos escritórios para o terraço de 100 metros quadrados –onde a câmera está instalada– tiveram de se proteger para não inalar o gás lacrimogêneo que subia até o 11º andar.

Seu canal no YouTube atingiu mais de 18 milhões de visualizações, 89.000 inscritos e 11.750 espectadores simultaneamente. Postaram 382 vídeos. São seguidos por usuários de todo o planeta, mas principalmente da Argentina, Estados Unidos, Espanha, Peru e México. “Em uma ocasião, uma vizinha do bairro perdeu a mãe no meio de uma manifestação e a encontrou graças à transmissão. Nós nos transformamos, sem planejar, em uma plataforma de utilidade pública”, conta.

Mas o que antes era vozerio e movimento –gritos, cantos, música, tambores– com a pandemia tudo se tornou quietude: “Agora existe um silêncio desolador, tremendo, impactante”, diz Trinidad Lopetegui. Foi uma espécie de freada que colocou o país em uma situação bipolar. Em outubro, proclamava-se que o Chile havia despertado. A economia do Chile sofreu. Mas a covid-19 parou a revolta bruscamente e o país parece estar vivendo em uma espécie de limbo. Alguns manifestantes pensavam no início de março que a pandemia era uma invenção dos poderosos para impedir as mudanças. Surpreendentemente, porém, os manifestantes da Plaza de la Dignidad acataram com relativa rapidez as ordens para ficar em casa. “A maioria teve consciência e entrou em confinamento imediatamente”, pensa a artista visual.

“ A covid-19 colocou em evidência a importância de demandas sociais como a saúde pública ”

O Chile é o país latino-americano que mais fez testes da covid-19: em meados de abril atingiu a marca de cerca de 118.000 exames, com capacidade para cerca de 8.000 diários em aproximadamente cinquenta laboratórios públicos e particulares. O Governo baseou sua estratégia em um alto número de testes e em quarentenas “seletivas e dinâmicas” apenas em alguns municípios, estabelecidas de acordo com o número de infectados. Ao contrário de outros países da região, o confinamento total não foi adotado, apesar da pressão das autoridades locais. Desde que o primeiro caso da doença foi notificado, no dia 3 de março, os protestos pararam de uma hora para outra, em parte porque estão vigentes o toque de recolher e o estado de emergência. O maior temor no Chile continua sendo o número de respiradores, que a Administração centralizou desde o sistema público e privado. Há alguns dias o Ministério da Saúde informou que havia 538 respiradores disponíveis em todo o país, distribuídos pelo Governo central de acordo com as solicitações regionais.

O primeiro caso de coronavírus foi conhecido no dia 3 de março e o Governo de Sebastián Piñera decretou o estado de exceção de emergência –com militares nas ruas, como na explosão de protestos–, toque de recolher, suspensão de aulas e fechamento do comércio. Mantém-se firme em sua decisão de não estabelecer uma quarentena total em nível nacional, mas apenas em algumas áreas, que vão mudando de acordo com o contágio. Exceto por algum panelaço organizado em algum bairro, nestas semanas os protestos pararam quase completamente, embora nos últimos dias de abril alguns grupos tenham desafiado as autoridades com concentrações ainda em pequena escala que foram reprimidas. Há algumas semanas o próprio presidente aproveitou a quietude da praça e, em um gesto duramente criticado, saiu de seu carro para se fotografar no epicentro do cenário dos protestos: “Não cometi nenhum crime (…), ninguém é dono deste lugar”, explicou Piñera mais tarde.

A grande questão no Chile é o que acontecerá com a mobilização social uma vez superada a emergência sanitária. Trinidad Lopetegui, que tem a pulsação das ruas na retina, acredita que ressurgirá com força: “A covid-19 colocou em evidência a importância de demandas sociais como a saúde pública e as grandes desigualdades, provocando maior indignação e raiva no povo”, diz.

Do alto do edifício, apesar do silêncio, é possível observar os rastros de uma multidão que hoje está confinada. No asfalto ainda se lê: históricas. Foi a palavra que as mulheres escreveram na Plaza Italia no dia 8 de março, quando cerca de dois milhões de chilenas saíram às ruas para marchar, em uma demonstração da força do movimento social que o feminismo liderou. Foi a última grande concentração antes do apagão, que a galeria CIMA continua transmitindo sem descanso.

El País