Criminalista famoso vê golpe e culpa Lava Jato

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Foto: Marcus Leoni /Folhapress

Há quatro anos o criminalista Alberto Toron passeava de barco, no Rio de Janeiro, com a esposa e os filhos quando foi surpreendido por uma tempestade. Não enxergava um palmo diante do nariz e temeu pelo futuro da sua família. Após uma travessia turbulenta, a embarcação conseguiu chegar em terra firme.

Neste ano, Toron, 61, diz ver o mar revolto novamente. O país atravessa uma grave crise sanitária, acompanhada de um vendaval na política com sérios danos à economia. Agora é a democracia que ele considera que pode naufragar. “O que eu vejo é um cheiro de golpe, cheiro de milícia no ar”, diz.

Advogado de políticos como a ex-presidente Dilma Rousseff e o deputado federal Aécio Neves, Toron se diz espantado com o vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, em que o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros ofendem governadores e integrantes do STF.

“Foi um desfilar de palavrões e agressões contra pessoas e instituições”, diz. “Falou-se disso, mas não falou-se da economia e da pandemia.”

Crítico também de Sergio Moro, ex-ministro de Bolsonaro com quem travou embates na Lava Jato, Toron diz que a operação foi o nascedouro do momento político atual. “Esse autoritarismo é um legado da Lava Jato, porque ela representou uma desconstrução do devido processo legal e forçou a legitimação de atos de repressão a pretexto de se coibir a corrupção.”

Vivemos uma grave crise sanitária e, em paralelo, uma crise política. Qual a gravidade disso? De um lado a pandemia, que por si só apresenta um problema gravíssimo. De outro, há a ausência de uma administração efetiva e organizada. A impressão que tenho é que o desenho do projeto Bolsonaro nas eleições não contemplava a vitória.

O ministro que aparentemente ia bem na Saúde, o Luiz Henrique Mandetta, foi posto para fora por discordar do achismo do presidente da República que queria cloroquina e não queria distanciamento social. Veio um segundo ministro, e também foi posto para fora. E agora, provisoriamente, está no cargo o ministro general Eduardo Pazzuelo. É assustador, porque há uma dissonância de vozes sobre o que muitos governadores e prefeitos falam e o presidente.

Moral da história, o distanciamento social acaba sendo relativizado, há uma dificuldade de impor essas políticas, e o país segue como se estivesse à deriva. Eu não vejo a curto prazo uma solução para isso. O que eu vejo é um cheiro de golpe, cheiro de milícia no ar.

No vídeo que veio a público da reunião ministerial, em 22 de março, pouco se falou da pandemia. O que se viu naquela reunião foi a antítese do que deve ser uma reunião governamental. Foi um desfilar de palavrões e agressões contra pessoas e instituições. Não se tratou da coisa pública. Esse é o grave da história. Este é um governo que vive à sombra de um eterno golpe que ele mesmo engendra. É por isso ele quer armar as pessoas. Ele quer armar para garantir um regime que ele quer impor. Isso é o que precisa ficar muito claro.

O senhor vê riscos à democracia no Brasil? Vejo risco muito concreto. O jornal Correio da Manhã de 1937 traz na manchete uma frase do ditador italiano Benito Mussolini dizendo que o povo precisa estar armado para ser forte. É essa a estratégia do fascismo. Afora essa questão, que por si só é muito grave, há os ataques ao STF [Supremo Tribunal Federal] e ao Poder legislativo.

O ataque ao STF não fica claro apenas na gravíssima frase do ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ele fica claro também em outros momentos e, principalmente, quando o general Augusto Heleno expede uma nota, apoiado pelo ministro da Defesa, dizendo que, se for determinada a busca e apreensão do celular do presidente da República, isso não será tolerado e poderá trazer consequências incalculáveis. É uma ameaça ao Supremo Tribunal Federal e isso é muito grave.

O senhor considera que está se caracterizando uma tentativa de interferência do presidente na PF? A primeira coisa que foi feita foi trocar o superintendente da PF do Rio de Janeiro. Se isso se faz para proteger a família do Bolsonaro ou não, é algo que vamos ter que conferir ainda.

Mas um fato que me assusta é a maneira pela qual foi desencadeada a operação contra o governador Wilson Witzel. Não é a operação em si. Se há indícios, há a necessidade da operação. Mas o caráter pirotécnico dela é exagerado e me parece que pode configurar algum tipo de abuso e, mais do que isso, a utilização da PF para perseguição de seus inimigos políticos.

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro saiu do governo reclamando de tentativa de interferência na PF por parte do presidente Bolsonaro. Como o senhor vê o papel do ex-ministro da Justiça nessa crise? A assunção de Moro ao cargo de ministro da Justiça merece uma reflexão, porque isso atina com o próprio exercício da atividade jurisdicional dele, particularmente na época do impeachment.

Moro autorizou a divulgação da conversa entre a ex-presidente Dilma com o ex-presidente Lula. Isso contribuiu em muito para a queda dela. E quando ele divulgou, às vésperas da eleição, a delação do Palocci, ajudou muito o candidato Bolsonaro. Ao meu modo de ver, neste momento, ele já estava jogando no time do Bolsonaro.

E qual o papel da Lava Jato na construção do momento atual do país? Esse autoritarismo é um legado da Lava Jato, porque ela representou uma desconstrução do devido processo legal. Ela forçou a legitimação de atos de repressão a pretexto de se coibir a corrupção.

O legado disso é um caldo de cultura do arbítrio, do autoritarismo, e o presidente Bolsonaro encarnou essa figura na candidatura e encarna como presidente da República. O legado da Operação Lava Jato no Brasil chama-se Jair Messias Bolsonaro.

Existem motivos para impeachment do presidente Bolsonaro? Acho que há elementos objetivos que indicam a prática do crime de responsabilidade. Seja com a ideia maluca de querer armar o povo, o que é muito grave, seja com a interferência na PF.

O ataque que se faz e que se fez mais de uma vez ao STF. Há condições jurídicas, mas não sei se há condições políticas. Minha opinião muito particular é que, se houvesse condições [políticas], o presidente da Câmara já teria deflagrado o início desse processo.

Folha