Deputados criam “bancada da selfie”

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Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

A adaptação para manter os trabalhos durante a pandemia do coronavírus fez parlamentares no Congresso e em Assembleias Legislativas se tornarem quem eles mais temiam. Menos ou mais afeitos às ferramentas digitais, não importa: acabaram todos presos dentro de grandes lives.

Por causa do vírus, os hiperconectados deputados que ganharam espaço nas atuais legislaturas viram sua tribo crescer desde a decisão das Casas de fazer sessões remotas, por videoconferência, para respeitar o isolamento social e proteger grupos vulneráveis da doença.

Sem o plenário físico e a tribuna de verdade, só restaram as câmeras como janela para o mundo. Nas últimas semanas, elas se tornaram a alternativa para que os legisladores participem de votações, conversem com apoiadores e compareçam a eventos —online, é claro.

Mesmo veteranos incomodados no passado com os pares que insistiam em transmitir tudo do plenário ao vivo tiveram que se render. Como acontece com toda novidade, vieram junto dificuldades de aclimatação e inevitáveis gafes, até certo ponto esperadas de quem não está acostumado ao “BBB político”.

Há alguns dias, em uma sessão da Câmara dos Deputados para deliberar sobre o programa Emprego Verde e Amarelo, dois políticos chamaram a atenção mais pelos escorregões do que pelos discursos.

Como mostrou o Painel, Charles Fernandes (PSD-BA) foi flagrado levantando de uma soneca no meio do debate. “Eu dei uma cochilada mesmo, mas eu votei”, justificou-se depois o parlamentar, que no momento da soneca, perto da meia-noite, estava deitado na cama, direto de sua casa, em Guanambi (BA).

Na mesma noite, Marcelo Ramos (PL-AM) apareceu na transmissão primeiro diante de um boneco do Homem-Aranha e depois acompanhado de um ursinho de pelúcia. A explicação: ele usou como estúdio os quartos dos dois filhos de 4 e 7 anos.

“Que isso? Que isso? Tem um tubarão ali? Meu Deus!”, disse Ramos em certo momento, sem perceber que seu microfone continuava aberto. Ao fundo se ouvia uma risada de criança. “Tem um coala?”, continuou o deputado na brincadeira doméstica, até ser advertido pelo presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ).

A Casa avaliou o sistema positivamente até agora e colheu relatos variados. Cria da internet e um dos mais jovens deputados da legislatura, Kim Kataguiri (DEM-SP), 24, já afirmou que, por praticidade, o modelo deveria ser mantido depois da crise, especialmente para a análise de temas menos polêmicos.

Líderes do Congresso ouvidos pela Folha falaram, no entanto, que a tecnologia deve cair em desuso quando a normalidade for retomada. Há resistência porque as possibilidades de discussão e estratégias para acelerar ou retardar a tramitação de projetos ficam limitadas.

Na opinião dos que já passaram dos 80 anos, a parafernalha é útil, mas nada substitui o diálogo e a convivência próprios das casas legislativas.

O advento da “bancada da selfie” (ou “dos youtubers”) foi eternizado em maio de 2019 pelo repórter-fotográfico da Folha Pedro Ladeira, com uma foto de deputados federais do PSL (à época sigla do presidente Jair Bolsonaro) reunidos no plenário com celulares em punho, cada um interagindo com uma tela.

O fenômeno, contudo, não se mostrou exclusividade da direita nem só da Câmara. Parlamentares mais jovens de esquerda, igualmente ligados às redes sociais, e estreantes de Legislativos nos estados também se notabilizaram pelo uso ilimitado da tecnologia, algo que consideram natural.

O choque cultural rendeu até a reclamação de políticos tradicionais de que a bancada das redes preferia falar para suas bases do outro lado da conexão a articular com seus pares.

Na Assembleia de São Paulo, a chegada em 2019 de Arthur do Val, o Mamãe Falei (eleito pelo DEM, hoje no Patriota), movimentou a Casa antes conhecida pelo ambiente pacato. Alçado ao posto por sua fama de youtuber, ele enfureceu colegas ao repetir na tribuna o estilo incendiário e teatral de seus vídeos.

Corta para 2020. Até Campos Machado (PTB-SP), um dos deputados que puxavam o levante contra Arthur (chegou a propor a proibição de lives do plenário), tem se posicionado com frequência diante da câmera, sentado na varanda ou na sala de casa, para gravar seus discursos —e depois postar no… YouTube.

A Assembleia adotou o formato virtual para as reuniões extraordinárias no fim de março. Na estreia, o presidente Cauê Macris (PSDB-SP), que conduzia a teleconferência, teve que dar bronca em Sebastião Santos (Republicanos-SP), que estava com o áudio do computador desativado e não conseguia se fazer ouvir.

O microfone, aliás, tem sido fonte de confusão e constrangimentos. Na Assembleia Legislativa do Paraná, o sistema captou o momento em que Nelson Justus (DEM-PR) mandou um recadinho nada gentil a Luiz Claudio Romanelli (PSB-PR), seu adversário político.

“Saiu?”, perguntou Justus na conferência, querendo checar se todos tinham ouvido acidentalmente o momento em que, achando que já estava desconectado, ele dissera: “Eu pus no c… do Romanelli”. Os outros deputados caíram no riso, confirmaram a indiscrição ao autor e continuaram a sessão.

Justus tinha acabado de, para usarmos um termo mais sóbrio, alfinetar o outro parlamentar ao pedir em sua fala que a entrada nas reuniões online da Comissão de Constituição e Justiça ficasse restrita a membros do colegiado (o que não é o caso de Romanelli).

Para além das sessões oficiais, deputados intensificaram a quantidade de posts em seus próprios perfis e de vídeos disparados via WhatsApp. As consequências da pandemia costumam ser a pauta mais frequente, mas também há espaço para aparições mais amenas.

Deputado estadual em Mato Grosso, Ulysses Moraes (PSL-MT), por exemplo, compartilhou com seus eleitores uma foto para mostrar como tem participado das reuniões da Assembleia: vestindo paletó e gravata no enquadramento que a câmera do computador alcança, mas pijama na parte de baixo.

“Videoconferência na quarentena, e como a gente tá?”, publicou Moraes, exibindo shortinho estampado com personagens de desenho animado e chinelos nos pés.

Folha