Enfermeira avisa bolsonaristas que o inimigo é o vírus

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Foto: Marcelo Tobias

Sou enfermeira há dez anos e atualmente trabalho na rede pública do Distrito Federal. Não estou na linha de frente contra a Covid-19, mas, na prática, todos nós da área da saúde fomos impactados pela pandemia — seja pelo risco de atender um paciente assintomático, seja pela simples mudança em nossa rotina (horários, protocolos etc.). Além disso, é claro, qualquer um pode ser convocado a prestar serviço numa unidade voltada para o surto. Depois de ouvir relatos chocantes de colegas que estão no combate direto — gente que está cumprindo turnos de doze horas sem tirar a roupa de proteção, pois não teria outra se saísse do hospital para almoçar, ou que passou a usar fraldas para não precisar ir ao banheiro, entre diversas situações muito impróprias — e, sobretudo, diante da crescente curva de mortes de enfermeiros e médicos em decorrência da doença, aderi à ideia de fazermos, enquanto categoria de trabalho, uma homenagem nas ruas àqueles profissionais que perderam a vida. Afinal, eles não são apenas números. Quando estávamos nos organizando, alguns colegas levantaram a dúvida: “E se nos confrontarem?”. Na hora, argumentei: “Vamos defender a vida; homenagear quem morreu lutando para salvar outras vidas. Quem seria contra uma coisa dessas?”. Infelizmente, os fatos me mostraram que eu estava enganada.

Antes de tudo, é preciso ressaltar que o nosso ato, em Brasília, não foi um protesto. Não estávamos contra nada. Além da homenagem em si e de darmos visibilidade à nossa categoria, queríamos mostrar à população que temos as nossas dificuldades, contudo estamos do lado dela. Pois bem: seguíamos com a nossa manifestação, pacificamente, quando, de uma hora para outra, surgiu um grupo de pessoas que apoiam o governo federal e começou a nos ofender. Primeiro, com palavrões. A certa altura, um homem decidiu atacar uma colega que estava ao meu lado, filmando tudo com o seu celular. Não consegui mais ficar parada. Entrei na frente dela e me coloquei entre os dois. Esse foi o momento em que ele me empurrou. Até então, mesmo com toda a truculência, nenhum de nós havia reagido. A partir do momento em que o tal homem encostou em mim, não tínhamos mais como manter o plano. Outras pessoas se aproximaram para afastar os agressores, enquanto eles continuavam gritando. Quero destacar que aquele foi um movimento de força das mulheres. Eu defendi a minha colega e, logo na sequência, quando eu mesma virei o alvo, outras enfermeiras saíram em minha defesa.

É claro que deu vontade de responder a todas as ofensas. No entanto, o resultado seria apenas mais violência. Depois de um tempo, a Polícia Militar chegou para nos defender — e estendemos a manifestação. Se não tivéssemos continuado, ficaríamos com a sensação de que os agressores haviam conseguido o que queriam. Durante o ato, eu sabia que a homenagem era maior que qualquer coisa.

Em casa, de volta, fui dominada por um sentimento de desilusão, de abandono. Como é possível lutar para cuidar das pessoas se parte da população nos agride? Não faz o menor sentido. Recuperei minha força com a quantidade de mensagens de apoio que recebi. Percebi que a violência vem de uma minoria.

Quando vejo, pelo país afora, profissionais de saúde sendo saudados como heróis, entendo e agradeço, pois me sinto homenageada. Essa visão, porém, me preocupa, porque o herói dá conta de tudo. Nós não somos assim. A população precisa ter essa compreensão. Nós a ajudamos, sim, só que precisamos também da ajuda dela. Isso acontece quando a sociedade segue as orientações de segurança para que a pandemia não avance ainda mais. O número de profissionais de saúde não vai aumentar na mesma proporção em que cresce o número de casos de Covid-19. A quantidade de pacientes tem de ficar no limite de que damos conta. Só assim derrotaremos o novo coronavírus. Ele é o verdadeiro inimigo, e não nós, enfermeiros e médicos.

Depoimento dado a Jennifer Ann Thomas

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