Por que Israel não quer que Bolsonaro use sua bandeira

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Foto: REUTERS

O uso da bandeira de Israel por manifestantes pró-Bolsonaro em um ato contra o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional e o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro no último domingo (3 de maio) em Brasília expôs um racha e gerou até preocupações sobre antissemitismo dentro da comunidade judaica brasileira, segundo apurou a BBC News Brasil.

Bolsonaro prestigiou o protesto da rampa do Palácio do Planalto. Bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos também foram empunhadas por manifestantes.

Parte da comunidade judaica critica a presença frequente da bandeira de Israel em atos pró-Bolsonaro, pois teme que o uso do símbolo passe uma imagem de apoio incondicional dos judeus ao presidente. A preocupação é ainda mais forte agora, por causa do posicionamento de Bolsonaro sobre o combate à pandemia do coronavírus. O presidente vem minimizando os riscos da doença, enquanto o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, de quem Bolsonaro é próximo e com o qual compartilha clara afinidade ideológica, decretou duras medidas de isolamento social – Israel foi um dos primeiros países a fechar fronteiras e promover o confinamento de sua população.

Há ainda outro importante elemento que não deve ser ignorado, segundo uma fonte afirmou à BBC News Brasil: o temor com o antissemitismo, que vem crescendo no mundo. Episódios de violência contra judeus têm sido registrados em vários países. Sendo assim, a associação da bandeira de Israel a manifestações com forte coloração ideológica em um ambiente político já altamente polarizado poderia se tornar combustível para ataques de ódio contra integrantes da comunidade.

“A comunidade judaica brasileira é plural. Há judeus e judias em todos os campos do espectro político, da direita à esquerda, de centro, apoiadores e opositores do governo. Também entre apoiadores de Israel há uma grande diversidade. O uso constante de bandeiras de Israel, em manifestações como as de ontem (domingo), pode passar uma mensagem errada sobre a composição pluralista da comunidade judaica brasileira e representar de maneira equivocada nossa posição em relação à agenda dos manifestantes e do governo”, diz o comunicado, assinado por Fernando Lottenberg, presidente da entidade.

“A Conib tem um firme compromisso com a democracia e com as liberdades públicas e lamenta a presença de bandeiras de Israel, uma democracia vibrante, em atos em que ocorrem ataques às instituições democráticas”, acrescenta a nota.

Para o Instituto Brasil-Israel, “o governo brasileiro e os setores que ainda o apoiam têm feito uso dessas bandeiras, mas elas não pertencem a eles”. No Twitter, a entidade lembrou que a bandeira de Israel não aparece apenas nos protestos favoráveis ao governo. O símbolo também foi usado em manifestações contrárias a Bolsonaro, incluindo o movimento conhecido como #EleNão.

Já o grupo Judeus pela Democracia, que reúne judeus de esquerda no Brasil, afirmou nas redes sociais que “a bandeira de Israel numa manifestação contra a democracia não representa os valores judaicos”.

“Que patriotismo é esse que tremula bandeiras e ignora milhares de mortos? Basta do sequestro de símbolos nacionais!”, publicou o grupo no Facebook.

Mas Luiz Mairovitch, presidente do Clube A Hebraica, no Rio de Janeiro, pensa diferente.

“Não vejo nenhum motivo para ser prejudicial (uso da bandeira). Pelo contrário. A gente nunca viu tanta bandeira de Israel aparecer em um governo como o de Bolsonaro, independentemente de acertos e erros dele. Não estou julgando as atitudes do presidente; me refiro estritamente ao uso da bandeira. Para um judeu, é sempre bem-vindo, um motivo de alegria saber que tem gente com a gente, nos apoiando, seja cristão, evangélico ou judeu, seja o que for”, diz ele à BBC News Brasil.

Em 2017, Mairovitch convidou Bolsonaro, na época deputado federal e já autodeclarado pré-candidato à Presidência, para fazer uma palestra no clube, fechada a convidados. Bolsonaro havia sido vetado em evento similar no clube de São Paulo. Grupos favoráveis e contra o atual presidente chegaram a criar abaixo-assinado na internet para defender e condenar a iniciativa. Do lado de fora, 150 pessoas, muitas das quais judeus mais progressistas, protestaram.

Durante o evento, que lotou o auditório do clube, com capacidade para 500 pessoas, Bolsonaro fez declarações controversas, ao afirmar que quem tem “cinco filhos, quatro são homens, no quinto eu dei uma fraquejada, veio uma mulher”. Também criticou a presença de refugiados no país e disse que quilombola “não serve nem para procriar”.

“Nós somos a maioria, acreditamos em Deus. A cultura judaico-cristã está em nosso meio”, afirmou.

Foi aplaudido várias vezes e chamado de “mito”.

Por inúmeras vezes desde o início de seu governo, Bolsonaro destacou a importância de Israel para o Brasil, defendendo que os dois países, cuja relação esfriou durante o governo de Dilma Rousseff, se reaproximassem.

Ele chegou a prometer transferir a embaixada brasileira no país de Tel Aviv para Jerusalém, cidade considerada sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos e reivindicada também como capital pelos palestinos, na esteira do que fizeram os Estados Unidos de Donald Trump.

A promessa não se concretizou – em dezembro do ano passado, o Brasil acabou abrindo um escritório comercial em Jerusalém, mas os laços com o atual governo israelense mantêm-se fortes desde então. O embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley, é um dos diplomatas com maior trânsito dentro do Planalto, já tendo aparecido ao lado de Bolsonaro em vários eventos públicos.

Na prática, a reaproximação de Bolsonaro com Israel atende a demanda de uma parcela de seu importante eleitorado evangélico, para quem “a promessa bíblica de Deus da Terra Santa ao povo judeu é literal e eterna”, disse à BBC News Brasil Elizabeth Oldmixon, estudiosa da relação entre política e religião e professora da Universidade do Norte do Texas Elizabeth Oldmixon, em entrevista no ano passado.

Para esses cristãos, adeptos do “dispensacionalismo”, o retorno dos Judeus à Terra Santa – ou seja, o estabelecimento de Israel – é necessário para a volta de Cristo.

No entanto, existe também um componente de alinhamento ideológico, destaca Oliver Stuenkel, professor-adjunto de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo.

“Nas relações internacionais, chamamos isso de criação de alianças por alinhamento ideológico. Isso acontece quando um chefe de Estado busca meios para consolidar, projetar e fortalecer suas convicções ideológicas. Brasil, Estados Unidos e Israel têm lideranças que transformaram suas respectivas relações com o resto do mundo. Bolsonaro segue a mesma estratégia de Trump e politizou as relações exteriores”, diz Stuenkel à BBC News Brasil.

“Esse processo de politização com os EUA e com Israel é feito para animar a base sem levar em consideração que uma boa relação entre países não deve depender de sua liderança, mas sim estar baseada em interesses nacionais”, acrescenta.

No ano passado, Netanyahu surpreendeu ao comparecer à posse de Bolsonaro. Foi a primeira visita de um premiê israelense ao Brasil. Bolsonaro retribuiu a visita indo a Israel meses depois, em abril.

Stuenkel vê riscos para o Brasil nessa aproximação que Bolsonaro promove.

“A aproximação que o Bolsonaro promove não é com os países, mas com os governos. O que torna essa aproximação muito perigosa. Tanto Trump quanto Netanyahu podem deixar seus cargos”, assinala.

Ele lembra que a diplomacia brasileira sempre se baseou na “continuidade, estabilidade e previsibilidade”.

“É muito raro que uma mudança de governo em outro país afete a relação bilateral com o Brasil. Bolsonaro abandonou essa prática, que deixou de ser com Israel e muito mais com Netanyahu”, completa.

“Aqueles para quem não está tão clara a diferença entre Israel e o judaísmo, essa associação pode afetar a maneira como elas enxergam Israel e portanto também o judaísmo.”

Stuenkel ressalva que o mesmo não ocorre com a bandeira dos Estados Unidos, também presente nos protestos de domingo.

“Conversei com um diplomata americano e ele está menos preocupado em relação a isso (uso da bandeira americana) nos atos pró-governo. Os Estados Unidos estão muito mais acostumados a despertar paixões partidárias, a favor ou contra o país. Já Israel é um país menor e com nuances bem diferentes das americanas”, argumenta.

O uso da bandeira de Israel nos atos pró-governo no último domingo não foi o único episódio a despertar polêmica recentemente.

Na semana passada, em artigo em seu blog pessoal, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, foi acusado de comparar o isolamento social para enfrentar o coronavírus aos campos de concentração nazistas que mataram milhões de judeus.

No trecho que causou controvérsia junto a parte da comunidade judaica, o chanceler escreveu que “os comunistas não repetirão o erro dos nazistas e desta vez farão o uso correto. Como? Talvez convencendo as pessoas de que é pelo seu próprio bem que elas estarão presas nesse campo de concentração, desprovidas de dignidade e liberdade. Ocorre-me propor uma definição: o nazista é um comunista que não se deu ao trabalho de enganar as suas vítimas”.

O jornal israelense Times of Israel criticou o ministro em reportagem. Várias entidades judaicas, incluindo o Comitê Judeu Americano, também repudiaram as declarações de Araújo e pediram que o chanceler se retratasse. Ele não pediu desculpas.

Logo após o episódio, em uma série de publicações em sua conta oficial no Twitter, Araújo alegou ter sido vítima “de uma crítica injusta e completamente equivocada do jornal Times of Israel, baseada em leitura distorcida de artigo que publiquei recentemente, no qual comentei um livro do autor comunista Slavoj Zizek”.

“Orgulho-me de minha postura de denunciar e combater o antissemitismo e de meu trabalho pela construção da relação de profunda amizade e parceria desejada pelos povos do Brasil e de Israel”, escreveu o ministro.

Em entrevista à BBC News Brasil na semana passada, o embaixador israelense Yossi Shelley disse ter conversado com Araújo sobre a polêmica. Segundo ele, o chanceler está “comprometido com a preservação da memória do Holocausto e com as lições que devem ser aprendidas com essa tragédia extraordinária”.

“Nos últimos dias, o chanceler forneceu esclarecimentos em seu post, inclusive em sua página de mídia social, demonstrando que está comprometido com a preservação da memória do Holocausto e com as lições que devem ser aprendidas com essa tragédia extraordinária em que 6 milhões de judeus foram assassinados apenas por causa do judaísmo”, disse Shelley.

No Twitter, Shelley também demonstrou apoio a Araújo ao compartilhar uma mensagem de solidariedade ao chanceler escrita pelo secretário de Comunicação da Presidência, Fábio Wajngarten, também judeu.

Contatado pela BBC News Brasil novamente nesta semana, Shelley não retornou aos pedidos de comentários sobre o uso da bandeira de Israel nos atos pró-Bolsonaro.

Especialistas temem que o apoio de Bolsonaro a Israel acabe afastando o Brasil de importantes aliados do mundo árabe e cause atritos diplomáticos. No ano passado, houve ameaças de sanções a produtos brasileiros.

Apesar disso, os países árabes passaram a ser o terceiro maior destino das exportações brasileiras no ano passado, segundo dados da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, atrás apenas da China e dos EUA.

BBC