Suécia não evitou crise ao não impor isolamento

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Nem o governo sueco manteve vida normal como se não houvesse coronavírus nem a ausência de confinamento vai evitar que o país seja atingido pela crise econômica decorrente da Covid-19.

Passado o pior momento da pandemia na Europa, ainda é cedo para saber a que resultados levou o caminho sueco tanto na saúde quanto na economia, dizem cientistas e autoridades do país e fora dele1.

Neste domingo (17), a taxa de letalidade do coronavírus na Suécia era de 36,5 por 100 mil habitantes. É menos da metade dos 78,1 da Bélgica, com população de tamanho equivalente, mas o quádruplo dos 9,7 da vizinha Dinamarca. A Suécia atribui esse índice ao maior número de casos em asilos

A história do físico nuclear brasileiro Marcos Moro, 31, e sua mulher, a arquiteta equatoriana Alejandra Sandoval, 35, separados quando ela estava na reta final da gravidez, ajuda a entender melhor a estratégia da Suécia, onde ele mora, e alguns de seus efeitos.

Quando decidimos engravidar, combinamos que ela viria morar comigo na Suécia a partir de julho, depois que a Milena nascesse.

Até lá, já havíamos planejado todas as visitas, e eu já tinha seis passagens reservadas para ir me encontrar com ela.

No dia 28 de fevereiro, tirei um dia de folga e, naquela sexta à tarde, nos casamos na Alemanha. Voltei para a Suécia no domingo, a pandemia chegou e acabou com nosso planejamento2.

Em 13.mar, a OMS anunciou que a Europa se tornara centro da pandemia global. A UE fechou fronteiras em 16.mar, e a Alemanha, dois dias depois

Começaram as notícias de fechamento de fronteira. “Agora lascou!”, eu pensei. Minha mulher com a gravidez cada vez mais avançada; minha sogra, que viria de Quito para ajudar, também sem poder embarcar.

A Alemanha elevou as restrições quase ao máximo possível, enquanto a Suécia não fez quase nada3, e as duas coisas jogavam contra nós.

O que ficou aberto na Suécia: fronteiras, bares, restaurantes, pré-escolas, escolas primárias, transporte público, parques, cabeleireiros, academias, cinemas; O que parou: museus, eventos esportivos, universidades e colégios (aulas prosseguiram online), visitas a casas de repouso, reuniões de mais de 50 pessoas; em Estocolmo, restaurantes e bares precisam garantir distanciamento físico

Ela, do seu lado, não podia sair, enquanto eu tinha que trabalhar normalmente as 40 horas semanais. Além disso, o governo sueco baniu viagens não essenciais, e visitar a mulher grávida de sete ou oito meses não era considerado essencial.

Claro que, se ela tivesse qualquer sintoma ou fosse para o hospital, eu teria permissão para viajar, mas precisaria fazer uma quarentena de 14 dias quando chegasse.

Desde o começo, o governo da Suécia foi muito claro e trabalhou muito para divulgar sua estratégia. Tanto que até eu, que não domino o idioma, entendia. Ficou claro que eles tentariam manter as restrições no nível mais baixo possível, para a sociedade não ser muito afetada no atacado, e que analisariam a situação do sistema de saúde região por região4.

“As leis suecas afirmam claramente que o cidadão tem a responsabilidade de não espalhar uma doença. Este é o núcleo de onde partimos”, disse à Nature, no fim de abril o epidemiologista responsável pela estratégia sueca, Anders Tegnell.

Uppsala tem pouco mais de 160 mil habitantes e continuou funcionando. Estocolmo, com 1 milhão de pessoas, sofreu mais restrições5.

Baixa densidade populacional (25 habitantes por km², contra 274 no Reino Unido) e 56,6% das pessoas morando sozinhas (maior taxa da Europa) ajudam a evitar o contágio na Suécia

Na Suécia existe um sistema de governança digital que centraliza todos os dados. A gente tem um aplicativo no celular pelo qual o médico acessa todos os nossos dados, prescreve a receita e é pelo aplicativo que a farmácia libera o remédio.

Por esse mesmo aplicativo você é avisado se chegou uma correspondência pelo correio, registra seu contrato de trabalho, declara seu Imposto de Renda, faz transferências bancárias.

Isso dá uma vantagem grande de acessar todos os dados dos 10 milhões de habitantes em tempo real e agir rápido com foco bem localizado

Pesquisas de opinião feitas neste mês mostram que 66% aprovam a estratégia do governo sueco

Não houve lei de confinamento, mas as recomendações do Ministério da Saúde são claras: mantenha distanciamento físico; fique em casa se tiver sintomas ou se for do grupo de risco. Caso contrário, vá trabalhar7.

Em 29.abr, o diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, defendeu a estratégia sueca; disse que a política de saúde pública do país era muito forte e que a comunicação com os cidadãos e a autorregulação poderiam ser exemplo para os desconfinamentos dos outros países

Na universidade em que sou pesquisador, trabalham cerca de mil pessoas no departamento. Como não houve ordem geral, o diretor do instituto baixou no mesmo dia a recomendação: se puder trabalhar de casa, combine com seu supervisor; se tiver que trabalhar no escritório, mantenha distância8.

8Um terço dos suecos disse estar em trabalho remoto, e a demanda de restaurantes caiu 70% em abril. Estatísticas mostraram queda no uso de transporte público, embora menor que em outros países sob bloqueio

Criamos uma planilha onde cada um colocava uma cor diferente se estava no laboratório, em casa sem sintomas, em casa com sintomas ou de férias. No começo, mais da metade ficou em casa.

Todas as semanas, o diretor da divisão mandava uma mensagem dizendo “conseguimos reduzir nossa atividade presencial, mas a produção científica não diminuiu; obrigado pela colaboração”. E até agora não houve nenhum caso de coronavírus no nosso departamento9.

9Os primeiros números do PIB da Suécia no primeiro trimestre, divulgados na semana passada, sugeriram que pelo menos em março o país teve desempenho melhor do que grande parte da UE: queda de 0,3%, em comparação com 3,8% na zona do euro

Nenhuma loja fechou, mas há controle para que elas não fiquem lotadas e se mantenha o distanciamento. Nos restaurantes, você precisa fazer o pedido na mesa, para não lotar o balcão.

Essa estratégia do governo não me deixou preocupado. Claro que eu temia ser hospitalizado, mas sabia que o sistema estava preparado10.

A ocupação dos hospitais e UTIs não chegou a níveis críticos. Na semana passada, havia 350 pacientes em terapia intensiva e 250 leitos disponíveis, segundo o Ministério da Saúde

Também me senti mais seguro de que não perderia meu trabalho. Acredito que a economia sueca foi menos afetada, mas não ficou incólume11.

No começo do mês, a UE estimou que a economia sueca deve encolher 6,1% neste ano, contra 5,9% na Dinamarca e 6,3% na Finlândia. A previsão para o desemprego sueco é de 9,7% neste ano, contra 6,4% na Dinamarca e 8,3% na Finlândia

Este é o momento da colheita de frutas vermelhas, por exemplo, mas os trabalhadores que vinham da Ásia ou da Europa oriental não estão podendo sair de seus países.

Tenho um amigo que é dono de uma plantação e disse que vai perder muita fruta. Sempre que pode, traz caixas para o escritório.

Outro amigo comprou um apartamento na planta, e já foi avisado de que a entrega vai atrasar, não porque não possam trabalhar, mas porque os caminhões com material de construção não estão passando na Dinamarca12.

A Suécia é uma economia pequena (cerca de US$ 556 bilhões de PIB em 2018, o 11º do continente. A indústria, que representa 13% do PIB, depende da importação de peças e da exportação de produtos a países afetados pela pandemia

Nesse tempo todo, ela grávida e sozinha, o que nos manteve calmos, principalmente no pior momento da doença na Europa, foi confiar no sistema de saúde alemão.

Apesar da pandemia, por mais que o hospital de Frankfurt estivesse mais atarefado com o vírus, a ginecologia e obstetrícia funcionou normalmente. Todas as consultas pré-natais da Alejandra foram realizadas na data em que haviam sido agendadas.

Os ministros de Saúde suecos são dos melhores institutos, dão entrevista do hospital, não de um gabinete13.

Legislação sueca impede o governo de interferir em ações de autoridades administrativas independentes, como a de Saúde Pública

Acompanham muito de perto as curvas da doença14.

A taxa de contágio (R) da Suécia caiu em abril de 1,4 para 0,85; na Dinamarca, baixou de 1 para 0,9 no mesmo período

Nas últimas semanas, quando você olha a planilha da minha universidade, já vê mais cores de gente trabalhando no escritório. Aos poucos, está acontecendo essa transição, sem que tivesse sido preciso nenhuma lei.

E na Europa todos já estão cientes de que o distanciamento vai ter que durar pelo menos até 2022, então aos poucos os países também vão começar a voltar ao nível daqui da Suécia.

Já vemos isso acontecendo aqui na Alemanha. No estado de Baden-Württemberg, onde mora Alejandra, alguns restaurantes já abriram, o zoológico, cabeleireiros, pode ir à missa. Mas a piscina ainda está fechada.

​Assim que a Alejandra passou da 37ª semana, tirei férias para ir à Alemanha. Precisava chegar pelo menos duas semanas antes do parto, por causa da regra de isolamento de 14 dias.

No aeroporto de Frankfurt, depois de dois meses sem ver minha mulher, eu chorava, parado na calçada de braços abertos, enquanto ela, com um barrigão de nove meses e máscara e também chorando de emoção, me desinfetava com dois sprays. Um casal até parou para olhar.

Aí, sim, nós pudemos dar um abraço.

Folha de SP