Virus não escolhe cor da pele para matar

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Dois meses se passaram desde que o governo de São Paulo anunciou a primeira morte confirmada pelo novo coronavírus. Até agora, porém, quase um terço desses mortos não tem cor nas estatísticas nacionais.

No total, 2.896 das 9.897 pessoas que faleceram até o dia 8 de maio tiveram sua raça ignorada na hora do registro, o equivalente a 29%. Quando se consideram as internações, a falta dessa informação é ainda mais recorrente, em 10.406 dos 27.086 hospitalizados (38%).

Já os casos em geral sequer são separados por cor nos boletins epidemiológicos semanais do Ministério da Saúde. Essas publicações só passaram a incluir os números por raça no dia 11 de abril, cerca de um mês e meio após a primeira confirmação da doença.

Os poucos dados disponíveis indicam que o vírus, que começou atingindo majoritariamente brancos, hoje vitimiza negros na mesma proporção. Os brancos correspondem a 34% dos óbitos até 8 de maio (3.339 pessoas) e os pretos e pardos, 35% (3.508).

Um mês antes, essa proporção era de 40% entre os brancos e 22% entre os negros, lembrando que a subnotificação era ainda maior, de 36%. Agora, os números do coronavírus se aproximam mais da realidade brasileira, cuja maioria da população é negra.

Para a médica Denize Ornelas, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que tem se debruçado sobre esse tema, o aumento mais acelerado das mortes entre pretos e pardos pode ter acontecido por duas principais razões.

Primeiro, porque os primeiros contaminados ao viajar para o exterior tinham maior poder aquisitivo e também mais acesso aos testes —dois terços dos exames feitos nas cidades de São Paulo e Rio até 25 de março foram em laboratórios privados, que cobravam de R$ 300 a R$ 690.

Segundo, porque a pandemia tem avançado para as periferias, onde muitos precisam sair para trabalhar e não estão em quarentena. Um levantamento publicado pela prefeitura paulistana, por exemplo, mostra que o vírus está matando mais pessoas abaixo de 60 anos em bairros pobres do que em bairros ricos.

Ornelas ressalta que os dados são essenciais para orientar políticas públicas que reduzam as desigualdades. “Apesar de estar morrendo mais gente na periferia, os hospitais de campanha em São Paulo foram construídos no grande centro”, exemplifica.

​“Desde o primeiro plano de contingência nacional para a Covid-19, as palavras pobreza e cor não apareciam. Quando começaram a divulgar os boletins, nos surpreendemos com a ausência desses números. O sistema de notificação sequer tinha um campo para os profissionais de saúde anotarem a cor”, critica.

Ela se refere ao e-SUS VE, que agrega todos os casos de síndrome gripal (leves) e é preenchido pelos médicos e enfermeiros das unidades de saúde. Há ainda o SIVEP-Gripe, onde são notificados os casos de síndrome respiratória aguda grave e óbitos, alimentado pelas unidades e pelo setor de vigilância das prefeituras.

A subnotificação dos dados contraria uma portaria do próprio ministério de 2017, que diz que “a coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado raça/cor são obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde”.

A falta de informações mobilizou diversos movimentos negros e outros órgãos. No início de abril, um grupo de 150 entidades batizado de Coalizão Negra por Direitos enviou uma carta ao Ministério da Saúde e às secretarias de todos os estados do país pedindo a divulgação da raça, gênero e bairro dos infectados.

O mesmo pedido também está em uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal), impetrada pelo PT e da qual fazem parte 22 organizações civis, e em outra ação na Justiça Federal do RJ, protocolada pela Defensoria Pública da União e pelo Instituto Luiz Gama.

Nesse último processo, uma liminar chegou a determinar em 4 de abril que o governo federal expedisse imediatamente diretrizes de preenchimento obrigatório dos dados na notificação de casos pelos municípios e estados, e que esses números fossem divulgados.

A Advocacia-Geral da União, porém, recorreu e conseguiu suspender a decisão nesta quarta (13), alegando que a aferição das informações é papel das autoridades locais, que cumprir a medida exigiria paralisar outras políticas e que o Judiciário não deve interferir em questões do Executivo.

Ornelas avalia que se no Brasil os dados do coronavírus não são suficientes nem para medir o racismo institucional —ou seja, a falta de acesso a serviços básicos—, mais difícil ainda será aprofundar o debate sobre o chamado racismo interpessoal, quando a pessoa é tratada de forma diferente pela cor da pele.

“Isso acontece, por exemplo, quando negras são menos tocadas no pré-natal, o que dá para ver pelo prontuário médico. Nesse momento da Covid ainda é muito difícil fazer esse tipo de avaliação: quem espera mais por um respirador num mesmo hospital, um negro ou um branco? Mas é um debate que o movimento negro vai ter que fazer ao final da crise”, avalia.

Questionado, o Ministério da Saúde respondeu que divulga semanalmente o boletim epidemiológico com o recorte por grupo de risco, faixa etária e raça/cor. Sua periodicidade, que antes era diária, “foi estendida para qualificar melhor os dados”, afirmou.

Uma atualização do boletim estava prevista para esta sexta (15), mas, com o pedido de demissão do ex-ministro Nelson Teich, não foi publicada. Os dados gerais de casos e óbitos, acrescentou a pasta, continuam sendo alimentados todo dia no site do governo.

Folha de SP