Até doações a universidades mostram racismo nos EUA

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Foto: Kerem Yucel/AFP

Meca é a cidade sagrada do islã para onde todo muçulmano deve, em tese, peregrinar ao menos uma vez na vida. Na capital dos EUA, o termo ganhou nova simbologia entre alunos negros que buscam um espaço para estudar e exercer sua identidade de forma livre e igualitária.

Meca é como ficou conhecida a Universidade Howard, a mais prestigiosa entre as instituições de ensino superior dedicadas a estudantes negros nos EUA.

No momento em que milhares vão às ruas contra o racismo e a violência policial, sua existência toca em pontos sensíveis, que vão desde o baixo investimento até a relevância em mantê-la num contexto de luta social contra a desigualdade racial no país.

Fundada em 1867, em Washington, Howard é uma universidade privada com cerca de 9.300 alunos, 89,7% negros.

Faz parte das chamadas HBCUs, coalizão de instituições criadas historicamente para oferecer ensino superior a jovens e adultos negros quando a segregação racial nos EUA era escancarada em lei.

Nessa época, antes do movimento pelos direitos civis americanos, na década de 1960, universidades proibiam a matrícula de pessoas negras.

Hoje são 101 instituições desse tipo nos EUA, mas é Howard que permanece como desejo de peregrinação para estudantes que lutam por um país mais diverso e inclusivo.

A batalha, porém, é longa e confronta diretamente o racismo estrutural dos EUA, refletido, entre vários aspectos, nos escassos investimentos e na preferência de doadores por instituições voltadas à elite financeira, gerando discrepâncias gritantes.

Em janeiro, por exemplo, uma fundação com sede na Califórnia decidiu doar US$ 10 milhões (R$ 50,5 milhões) para a expansão do programa de ciências exatas e tecnologia de Howard.

Foi o maior valor recebido na história da universidade, mas 180 vezes menor que o recorde da vizinha Johns Hopkins que, em 2018, recebeu US$ 1,8 bilhão (R$ 9,09 bilhões) de Michael Bloomberg —pré-candidato democrata à Presidência, que desistiu.

Também localizadas na capital americana, Georgetown e George Washington tiveram doações dez e oito vezes superiores ao recorde de Howard.

A primeira recebeu US$ 100 milhões (R$ 505 milhões) de um empresário em 2013; a segunda ganhou US$ 80 milhões (R$ 404 milhões) de uma instituição em 2014.

Professor assistente de jornalismo em Howard, Mark Beckford diz que esse cenário reflete e alimenta a disparidade social dos EUA.

“Há uma enorme diferença de riquezas e vozes entre pessoas brancas e negras no país. As pessoas negras não têm conexões e relações com gente rica do mesmo jeito que as pessoas brancas. Claro que universidades para alunos negros vão receber menos.”

Nascido na Jamaica, Beckford afirma que, depois de formados, estudantes negros geralmente levam mais tempo para conseguir uma vida financeira estável e, por isso, doações de ex-alunos —tradição nos EUA— também não costumam ser expressivas em instituições como Howard.

Estudo do American Council on Education mostra que o abismo não está só nas doações, mas na dependência de investimentos do governo e no investimento do setor privado.

Os aportes federais, estaduais ou municipais representam 54% das receitas de HBCUs públicas, enquanto as que não pertencem ao sistema têm 38% de suas receitas dependentes do governo.

Entre HBCUs particulares, investimentos privados representam 17% da receita, e 25% no caso das demais.

As doações, no geral, são pelo menos 70% menores nas HBCUs, o que aprofunda a lacuna e compromete a capacidade de amortecer as diferenças em outros recursos.

“Há um conflito de interesse quando americanos dizem que querem diversidade mas só dão dinheiro para instituições que produzem apenas um certo tipo de estudante”, diz Amy Yeboah, professora do departamento de estudos afro-americanos em Howard.

Ela destaca que, com mais investimento, seria possível avançar no combate às disparidades. “Fazemos muito com pouco. Se querem mais diversidade, deveriam dar mais dinheiro a quem faz isso.”

Apesar da notoriedade, Howard não está no ranking das cem melhores universidades dos EUA, de acordo com a revista Forbes, ao contrário das vizinhas em Washington, todas com cerca de 6% de alunos negros.

Filha de imigrantes de Gana para os EUA, Yeboah diz que o papel de universidades como Howard é criar um ambiente para que alunos produzam conhecimento e ações que impactem na disparidade racial.

Ela afirma que a maior parte dos professores da universidade é negra (64%), ao contrário do que ocorre em outras instituições —Johns Hopkins, por exemplo, tem apenas 7% dos docentes negros.

Para Yeboah, a diversidade é determinante para que todos os alunos se enxerguem no processo de aprendizado. “A média dos americanos não está pensando em como fazer um país mais igualitário e diverso. Pessoas negras, em ambientes para pessoas negras, estão constantemente pensando nisso, pois isso significa muito para a gente.”

Em Howard, 47% dos estudantes são aptos a receber auxílio do governo para famílias de baixa renda; nas demais universidades de Washington esse índice fica em torno de 15%.

O professor Beckford concorda que alunos negros precisam de um espaço seguro para construir seus modelos, mas alerta que, ao saírem do campus, encontrarão um país com racismo sistêmico.

“Mas eles estarão cientes disso. Em Howard, os estudantes não aprendem só o que é preciso para ser um profissional bem-sucedido, mas como manter sua história, seu orgulho e seu valor na sociedade.”

Os negros são 13% da população dos EUA, e grande parte dos profissionais negros é graduada em HBCUs.

“Estamos falando de 80% dos juízes negros formados em HBCUs, 50% dos advogados negros, 25% a 30% dos cientistas”, diz Yeboah. E os notáveis, afirma, inspiram as novas gerações.

Entre os que se formaram em Howard estão Thurgood Marshall, primeiro juiz negro da Suprema Corte; a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison; e a senadora Kamala Harris, uma das apostas para vice de Joe Biden, candidato democrata na corrida à Casa Branca.

Os amplos jardins de Howard ficam a menos de três quilômetros da sede do governo americano. Desde o assassinato de George Floyd, um homem negro asfixiado por um policial branco em Minneapolis, a bandeira dos EUA está a meio mastro na praça principal da universidade.

O campus está vazio por causa da pandemia que matou mais de 114 mil no país —quase 25% delas negras. A crise pode também adiar o festival de música e arte que ocorre em outubro, fazendo com que alunos e ex-alunos suspendam a peregrinação até a “Meca” no segundo semestre.

A professora Yeboah diz que o ativismo dos estudantes permanece nas ruas. Para quem pergunta sobre a importância de manter universidades como Howard após o fim da segregação, ela cita a convulsão social e a contribuição dessas instituições para o mundo, e conclui: “Por que não?”

Folha De S. Paulo