Gilmar diz que Forças Armadas não são milícias

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Foto: Reprodução

Em “live” promovida ontem pelo Valor, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), classificou como “irresponsável”, “loucura” e “tese de lunático” a interpretação do presidente Jair Bolsonaro e aliados de que o artigo 142 da Constituição Federal pode ser usado para legitimar uma eventual intervenção militar e conter o que consideram excessos do Poder Judiciário. Em meio à uma crise entre os Poderes, o ministro defendeu ainda que as “Forças Armadas não são milícias de uma dada facção partidária”.

Durante a entrevista, o ministro rebateu uma declaração do procurador-geral da República, Augusto Aras, que defendeu que o artigo 142 da Constituição prevê que, em caso de interferência, os militares devem garantir o “funcionamento dos Poderes constituídos”. “Eu acho algo completamente irresponsável. Vou repetir: é uma interpretação irresponsável aquela que atribui às Forças Armadas o papel de interpretar a Constituição.”

Segundo ele, o Supremo é o “guardião da Constituição”. O ministro avalia ainda ter se instalado no país uma “grande loucura, uma grande confusão” em relação a esse assunto. “Recentemente eu disse que essa tese é uma tese de lunáticos. É uma viagem de lunáticos. O artigo 142 tem uma discussão muito importante que é a missão das Forças Armadas para proteger poderes constitucionais e assegurar a lei e a ordem a pedido de um dos Poderes, mas é só isso”, disse.

Segundo Gilmar, a primeira vez que ele ouviu falar sobre essa tese do artigo 142 foi durante uma conversa com o então comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas. O ministro contou que, dias antes, o professor Ives Gandra teria ido ao Forte Apache, como é chamado o Quartel-General do Exército, e lançado essa nova interpretação. “O general Villas Bôas me perguntou e eu disse que isso não estava em lugar nenhum”, contou.

Ele, no entanto, afirmou que foi essa interpretação que fez o então comandante do Exército sugerir, nas redes sociais, que poderia haver uma intervenção militar, na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no STF.

Em mais um movimento do governo para distensionar o clima com o Supremo, o ministro contou também que teve uma conversa com o presidente no sábado e ponderou que ele deveria evitar a participação nas manifestações que pedem o fechamento do STF e do Congresso. Ele também repudiou o fato de o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, ter sobrevoado, ao lado de Bolsonaro, um protesto no fim de semana e cobrou uma posição da cúpula militar. “Eu acho que, inclusive, os militares têm que ter muito cuidado quando participam dessas manifestações. Acho até que os chefes das Forças Armadas deveriam se pronunciar sobre isso.”

O ministro também defendeu um “severo controle” na liberação de posse e porte de armas, na linha contrária do que pretende o governo. “Isso nós temos também que repudiar claramente. Essa ideia de armar pessoas para atingir outras, eu acho que nós devemos ser muito severo no controle de armas, porque de fato pode, daqui a pouco, ocorrer um incidente grave”, disse.

Segundo ele, o direito da livre manifestação é garantida pela Constituição, mas sem agressões. “Agredir a Constituição não pode. Agredir pessoas não pode. Não pode o presidente, não pode seu mais ferrenho militante, não pode o ministro da Defesa. Não podemos nós os ministros do Supremo. Ninguém pode. Isso precisa ser dito de maneira muito clara. Isso é parte de um pacto civilizatório.”

O ministro também demonstrou preocupação com o fato de manifestantes pró e contra governo poderem entrar novamente em conflito, como aconteceu no fim de semana, em São Paulo. “Nós queremos essa confusão no país? Nós queremos que haja milícias pró-governo e milícias contra o governo? Que esses grupos se armem em nome de alguma causa?”, questionou.

Gilmar disse ainda que, apesar das ameaças públicas, o presidente vem respeitando as determinações da Corte e lembrou que o descumprimento de uma decisão judicial é crime de responsabilidade, que pode levar ao impeachment.

O ministro também defendeu o inquérito das “fake news”, que apura ofensas e ameaças a integrantes da Corte. “Tenho impressão de que o inquérito foi mal compreendido no início.”

Segundo ele, um “grupo barulhento” de procuradores fez com que a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se manifestasse contra a investigação, o que fez com que parte da mídia comprasse a ideia de que o inquérito era ilegal.

“Eu acho que hoje as pessoas estão entendendo a importância do inquérito e notando a sua validade”, afirmou.

Ele afirmou, no entanto, que não sabe se as provas colhidas pelo inquérito serão compartilhadas com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para serem usadas nas ações que pedem a cassação do mandado de Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão. “Não sei como o TSE vai proceder em relação a esse tipo de matéria, mas certamente procederá com o devido cuidado. Talvez nem ache que o TSE está voltado para uma eventual cassação de chapa, não é disso que se cuida.”

Gilmar também minimizou as declarações recentes de Bolsonaro sobre a possibilidade de indicar Aras para uma vaga no Supremo. Cabe ao PGR apresentar uma eventual denúncia contra o presidente. “Eu não atribuo maior significado a esse gesto. O presidente fala, às vezes, para dar pista e, às vezes, para servir de despiste”, disse, lembrando que Bolsonaro já afirmou que indicaria o ex-ministro Sergio Moro para a vaga que abre em novembro, e depois falou em um nome “terrivelmente evangélico”.

“O presidente tem feito um pouco de esconde-esconde com essa temática e a gente, na verdade, não pode se fiar.”

O ministro avaliou ainda que a postura do presidente enfraquece o isolamento social, apesar das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ele também voltou a defender a necessidade de uma atuação integrada de todos os entes da federação. “O governo precisa fazer mais no campo administrativo, ter um comitê de crise. E tenho impressão que [a reabertura] tem que ser subsidiada com expertise, critérios técnicos. Isso precisa ser discutido e recondicionado”, frisou.

Valor Econômico