Globo e Fifa se divorciam

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Foto: Nadine Rupp/Getty Images/VEJA

Vítima das transformações e crises provocadas pela pandemia de coronavírus no planeta, o casamento de 14 anos entre a Globo e a Fifa começou a caminhar para o fim na semana passada.

O litígio multimilionário foi aberto pela emissora brasileira no dia 16, a partir de uma ação protocolada na 6ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ela envolve o contrato de licenciamento de direitos para a transmissão, no Brasil, de diversos eventos esportivos organizados pela FIFA entre 2015 e 2022.

O arranjo foi firmado em 2011, no valor de 600 milhões de dólares, a serem pagos em nove parcelas, restando três pagamentos anuais de 90 milhões de dólares (cerca de 450 milhões de reais na cotação atual) por vencer.

Em uma petição de 35 páginas à juíza Maria Cristina Brito Lima, a emissora solicita uma autorização liminar para não pagar à entidade máxima do futebol a parcela que vencerá no próximo dia 30 e avisa que tomou a decisão de acionar a cláusula de arbitragem contra a Fifa para rediscutir o contrato na Justiça da Suíça.

“Para assegurar à Globo o direito de levar adiante o litígio com a Fifa sem que sofra prejuízos irreversíveis, é necessário não apenas obter uma ordem judicial que suspenda o cumprimento da obrigação até que ela seja submetida à apreciação dos árbitros, mas também que essa ordem produza efeitos em relação à instituição financeira garantidora da obrigação. Do contrário, de nada valerá a decisão judicial”, registram os advogados do escritório Sergio Bermudes, na ação, citando ainda a garantia bancária do negócio pela qual o Itaú deve pagar a parcela, se a emissora não honrar o compromisso.

Diante do cancelamento de uma série de competições esportivas importantes, previstas no contrato, por causa da pandemia, a Globo considera o mais correto encerrar o acordo com a Fifa.

“Até hoje a Globo não descumpriu uma única obrigação assumida com a Fifa no contrato de licenciamento. Todos os pagamentos foram feitos a tempo e a hora. Esse continua sendo o espírito que norteia o comportamento da autora. Porém, diante da injustificada resistência da Fifa em reconhecer o óbvio; da miopia da entidade maior do futebol mundial em relação às profundas mudanças que a humanidade enfrenta em razão do cenário de pandemia, que se apresentam ainda com maior gravidade no caso brasileiro, não resta alternativa à Globo senão buscar a proteção dos seus legítimos direitos, mesmo antes de iniciada a arbitragem que se avizinha”, escrevem os advogados.

A mudança de realidade mundial, com competições paralisadas ou suspensas, além do desvirtuamento do calendário de eventos são argumentos usados pela emissora para invocar o direito de renegociar os termos.

A emissora junta na ação um documento em que a própria Fifa reconhece que, atualmente, não há certeza alguma sobre se e quando serão realizadas as competições internacionais de futebol. “É evidente que o surto da Covid-19 pode levar a situações em que os contratos não possam ser realizados em todo o mundo como inicialmente previsto pelas partes. As obrigações impostas às partes serão potencialmente impossíveis: jogadores e treinadores serão incapazes de trabalhar, e os clubes serão incapazes de fornecer trabalho”. A Fifa, no entanto, segue determinada a receber integralmente a parcela de 90 milhões de dólares.

“A despeito do cancelamento de vários eventos relevantes que eram objeto do contrato, mesmo antes da pandemia da Covid-19, das profundas alterações no contexto fático e econômico havidas desde a celebração do contrato e das enormes incertezas que hoje cercam a realização de eventos esportivos em todo o mundo, a Fifa segue impávida, insensível à gravidade do momento atual, como se nada acontecesse. Quer porque quer que a Globo siga em frente com todos os pagamentos previstos originalmente no contrato, mesmo ciente da brutal modificação do cenário esportivo mundial e que não será mais possível a realização dos eventos nos moldes previstos inicialmente”, registram a ação.

Desde maio, em sigilo, a Globo tenta entrar em um acordo com a Fifa para cancelar o contrato que tem hoje como principal atrativo os direitos de cobertura sobre a Copa do Mundo do Catar, em 2022.

“Seja em razão das inúmeras questões sanitárias que assolam o mundo pós pandemia da Covid-19, ou por conta da grave crise econômica que se abateu sobre o Brasil nos últimos anos, e se aprofundará dramaticamente nos próximos anos, é evidente a necessidade de revisão do Contrato de Licenciamento. A crise é tão grave que a única saída razoável talvez seja o término definitivo do Contrato de Licenciamento, como a Globo, de boa-fé, deixou claro para a Fifa na carta remetida àquela entidade em 19.5.2020: ‘Em relação ao Acordo de Prorrogação 2018/2022, à luz das circunstâncias materialmente alteradas devido à crise da COVID-19, o valor dos direitos tornou-se desequilibrado e oneroso demais (…) Diante do exposto, a Globo não vê alternativa real senão buscar a rescisão’”, registra a emissora.

Para mostrar que o pagamento à entidade do futebol, nesse momento de incertezas econômicas provocadas pela pandemia, provocará sérios prejuízos à emissora, os advogados da Globo analisam a conjuntura de crises que se abateu sobre o mercado de publicidade nos últimos anos:

“A recessão, a crise política, com os protestos de 2015, que culminaram no impeachment da presidente Dilma Rousseff, a substancial desvalorização da moeda (em 2011, a cotação média do dólar foi de R$ 1,90), os impactos das operações de combate à corrupção, notadamente, a Operação Lava-Jato deflagrada em 2014, são apenas alguns dos elementos que explicam, por exemplo, a queda de mais de R$ 6 bilhões na expectativa de gastos com publicidade que se tinha no ano de 2011, quando firmado o contrato, comparado aos números atuais — e isso sem levar em consideração os efeitos da pandemia da Covid-19”.

A Globo sustenta que, “para fazer frente a esse pagamento, terá que utilizar uma parte muito relevante da sua liquidez, justamente quando ela é mais necessária, em razão da acentuada queda de suas receitas em razão dos efeitos da pandemia da Covid-19”.

“Não é lógico nem razoável exigir da autora o desembolso de cerca de cerca de R$ 450 milhões (a que se somam os custos fiscais da remessa de valores, que contratualmente recaem sobre a autora) para honrar o pagamento de uma parcela de um contrato que, já sabemos, terá que ser renegociado, com substancial redução de valores (quiçá extinção). O impacto financeiro desse pagamento será muito grave para a autora, especialmente nesse momento”, registram os advogados.

A iniciativa da Globo contra a Fifa não deve ser isolada, já que o apagão esportivo provocado pela pandemia prejudicou outras relações comerciais com parceiros da entidade pelo planeta. Desde o início da pandemia, o mundo do futebol viu vários campeonatos terem jogos adiados, cancelados ou realizados com portões fechados.

Especialistas consultados pelo Radar avaliam que a emissora, no caso da arbitragem na Suíça, tem fortes chances de vencer a disputa com a Fifa. É o caso do jurista e mestre em direito econômico Leonardo Antonelli, que avaliou o caso em tese. “No direito suíço, assim como no brasileiro, quando se faz presente a chamada justa causa econômica pode ocorrer a revisão dos contratos. O surgimento da pandemia, o desaparecimento de anunciantes e a crise mundial no setor de entretenimento se constituem em três hipóteses distintas que, per si, seriam suficientes para se invocar quaisquer das teorias clássicas que permitem a revisão contratual”, avalia.

A rescisão do contrato com a Fifa, pleiteada pela Globo, representa o fim da relação iniciada, segundo os advogados da emissora, em 13 de dezembro de 2006.

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